Kendrick Lamar: Justiça Poética

O veredicto sobre o primeiro e pouco conhecido disco do rapper faz com que “Good Kid, M.A.A.D. City” seja ainda mais bem visto

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Voltamos ao ano de 2012, mês de outubro. Nele, o lançamento do primeiro disco por uma gravadora grande, duas no caso, Aftermath e Interscope, de Kendrick Lamar o fariam explodir para o mundo. No entanto, muito além de simplesmente um “debut em escala maior”, o álbum viria como um dos melhores exemplos de união entre conteúdo lírico – histórias sobre o cotidiano do rapper e uma narrativa cinematográfica – e precisão na produção de batidas de Hip Hop com misturas de inspirações em outras épocas do gênero, mas colocadas de uma forma moderna e brutal, que fariam o trabalho alcançar patamares distantes do seu próprio estilo musical.

É comum, em menos de um ano e meio depois de seu lançamento, escutar expressões como ¨Bitch, Don’t Kill My Vibe” no boca a boca ou simplesmente estampadas em camisetas por aí, sendo usadas por pessoas que muitas vezes não gostavam de Hip Hop e que se introduziram no estilo por causa desse trabalho. No meio, podemos passar por um texto inteiro elogiando o rapper, considerado um dos grandes músicos desta geração junto a nomes fortes como Jay-Z, Kanye West e seu “rival” Drake. Só um exercício para sua memória e um retorno aos Grammys deste ano mostram a repercussão por seu disco Good Kid, M.A.A.D. City que não venceu o prêmio, sendo perdido para o Pop de Macklemore & Ryan Lewis (com tweets dos próprios afirmando que não mereciam ganhá-lo, nomeando Lamar como o dono do gênero entre os indicados). E isso para um disco que não era nem de 2013.

Mas, a carreira do músico não começou com os hits de Poetic Justice, Money Trees e Swimming Pools e o seu primeiro trabalho, lançado diretamente em formato digital e independente, o fez figurar entres os melhores discos de 2011. Revisitar Section 80 nos mostra evidências que o sucesso do rapper não surgiu de forma espontânea e que, se não temos o formato narrativo e estruturado de seu segundo disco, temos as costumeiras aberturas de Kendrick para seu cotidiano, fora o seu talento para conseguir transformar a sua voz rimada em batidas. Esta sede ao pote, vista na rapidez com que Lamar profere suas palavras, algo que pode ser visto na apresentação feita com Imagine Dragoons neste ano nos mesmos Grammys (o músico ganha o momento com louvor ali, arrepiando até o mais incrédulo no Hip Hop), já era sentido em faixas como em The Spiteful Chant e Rigamortis.

A pesada primeira canção mostra Kendrick antecipando as batidas, cantando de forma pausada e chapada, enquanto a segunda é tão rápida quanto as batidas por minuto que a configuram. Em ambos os casos, a sua voz é muito mais que instrumento para se cantar e dizer o que pensa, é a levada da música e é o que diferencia sua instrumentação em loop. No entanto, qualquer rapper que já venceu uma rinha de MCs passou pelo desafio de falar rapidamente uma linha com sentido, seguindo a batida improvisada que foi jogada no momento. O que o diferencia dos outros?

Nos concentramos em uma música de diversas formas. O Hip Hop atual acabou virando um antro de produtores que disputam os ouvidos dos fãs do gênero ao trazer elementos diferentes que os possibilitem diferenciar-se dos demais. Onde fica a letra? Onde se localiza o papel do MC em contar histórias interessantes, criar a sua poesia lírica enquanto hipnotiza os ouvintes? E é neste lugar restrito a poucos em que Kendrick se localiza. Ao começar Section 80, na faixa de abertura, em Fuck Your Ethnicity, o rapper afirma: “Fire burning inside my eyes, this the music that saved my life/Y’all be calling it hip-hop, I be calling it hypnotize”. Ao melhor estilo de Notorious B.I.G, em Hypnotize, Lamar joga nos seus primeiros versos a sua raiva em relação ao racismo ao mesmo tempo que define o que é música para ele. Deixa o ouvinte fã do gênero sedento pelo desenvolvimento de suas histórias, enquanto cativa os desconhecidos no meio com suas ótimas batidas, samples e sua voz ritmica.

Temas como política na nervosa Ronald Reagan Era, prostituição em Keisha’s Song (Her Pain) ou o tráfico de drogas e seus consumidores em A.D.H.D se confudem com as levadas jazzísticas de Ab-Souls Outro e Poe Mans Dreams (His Vice). Sua combinação é fatal e já mostrava um disco preocupado com o que o Hip Hop representa para seu locutor e, indiretamente, aos amantes do gênero. Section 80 é tão bom quando Good Kid, M.A.A.D City e o resultado que o segundo trabalho teve só evidencia a qualidade do primeiro. Faixas matadoras, temáticas interessantes e batidas viciantes fazem deste um disco obrigatório a todos que se consideram apreciadores do músico.

Kush & Corinthians antecipa a letargia que viria em seguida enquanto tem um dos melhores momentos do músico em sua carreira ao fazê-lo se abrir: “Look at me, look at me, I’m a loser, I’m a winner /I’m good, I’m bad, I’m a Christian, I’m a sinner/I’m humble, I’m loud, I’m righteous, I’m a killer/What I’m doing, I’m saying that I’m human” são versos fortes que, quando escutados do jeito que Kendrick os interpreta, entrando no tempo da música e entrando no vacuo de suas batidas, realmente mostram um rapper diferenciado.

Nunca tivemos a chance de vê-lo ao vivo no Brasil, algo que o Monkeybuzz fará no Primavera Sound deste ano. Se, por acaso, você já enjoou de se viciar em cada uma das músicas de Good Kid, saiba que você tem a oportunidade de se deparar com um trabalho excelente, um dos embriões do músico para o mundo que mostrava que, como poucos, Kendrick consegue fazer como sua famosa canção diz: justiça poética. Seu cotidiano não é esquecido e seu histórico de vida na violenta cidade de Compton, a mesma do “primeiro bilionário do Hip Hop” Dr. Dre, nos mostra que na música sempre há espaço para históricas interessantes contanto que seu contador saiba passá-la. Lamar está nesse degrau acima, mas acho que você já sabia disso, não? Corra e se deixe levar pelo ótimo Section 80.

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Autor:

Economista musical, viciado em games, filmes, astrofísica e arte em geral.