5pra1: Joni Mitchell

Emoções obtusas e ordinárias formam a discografia de uma das maiores compositoras de todos os tempos – uma obra em que palavra, som e artes visuais são elementos de alquimia

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Fotos: Joel Bernstein

A série 5pra1 apresenta e destrincha cinco discos que servem como primeiro mergulho na obra de um artista.

 

“Quando eu estava no sétimo ano da escola, me lembro de estar pendurando quadros na parede para uma exposição de pais e professores”, contou Joni Mitchell em um especial exibido na TV norte-americana, em 1998. “Um deles veio até mim e me perguntou: ‘Você gosta de pintar?’. Eu respondi que sim, de modo que ouvi: ‘Bem, se você pinta usando um pincel, você pode fazer isso também com as palavras”.

À época, aos 55 anos de idade, ela já era uma veterana na indústria da música e desejava se ausentar dos palcos. Na bagagem estavam 16 álbuns de estúdio e o feito de ser a autora da grande maioria das faixas.

O ato de revisitar a dita situação ocorrida na infância envolve uma perspectiva que vai além da memória superficial. Descrita por seus pares como uma pessoa desde sempre ligada à música, a cantora canadense se colocou diante de um ponto fundamental para a compreensão de seu processo criativo: o entrecruzamento de áreas.

Para além de uma preocupação com percursos de arranjos e letra, Mitchell assumiu controle da própria narrativa ao ilustrar a si mesma na capa dos LPs – um trabalho complexo e artesanal, capaz de plasmar até mesmo diferentes estados de espírito e um aguçado senso de observação. Estão nas telas as decisões que a fizeram deixar de ser Roberta para se tornar, enfim, Joni.

Atualmente, às vésperas de completar 80 anos, a cantora é respeitada em diferentes frentes pelas portas que abriu. A começar pelo fato de que se impôs a uma multidão de homens que dominava a indústria e comandava, meticulosamente, a carreira de outras mulheres.

Multi-instrumentista, rechaçou todas as formas de subserviência para criar algo seu, uma obra inédita. Teve a coragem de dizer, inclusive, que Bob Dylan e seus acólitos eram “pouco originais”. Comprometida com a verdade das palavras, que a levou tão longe, Joni exorcizou amores e dramas pessoais que depois seriam incorporados por outros e outros ouvintes.

No fim das contas, ela se revelou muitas em uma só. Do folk que a consagrou nos anos 1960, sua música se deixou atravessar pelo pop que viria a dominar as paradas duas décadas mais tarde – ainda que de um jeito muito próprio, experimental e que acenava a figuras marginalizadas como drag queens e punks. Críticos e fãs ortodoxos se enraiveceram, deixando de comprar seus LPs.

Só embalada pelo jazz, gênero responsável por encerrar seus trabalhos no início dos anos 2000, é que houve um reencontro. Seu último disco gravado em estúdio foi Travelogue (2002), uma coletânea em que revisita grandes clássicos na companhia de uma orquestra composta por 70 integrantes ilustres.

Para moldar suas palavras e sons, Joni Mitchell nada temeu na função de artífice. No disco Dog Eat Dog (1985), trabalho em geral menosprezado diante do culto que se criou em torno de obra lançada na década de 1970, seguiu afiada ao compor, mesmo que a linguagem musical já fosse outra. Na faixa de abertura, “Good Friends”, a cantora fala sobre encontros com o acaso dos quais nunca teve medo.

Às vezes, a mudança vem até você
como uma avalanche acidental
O caos agora é ordem
Coisas corriqueiras que você não pode prever
Pode haver um problema ao virar a esquina
Pode haver beleza logo ali
Sincronizada como mágica
Bons amigos, como eu e você”

- “Good Friends”

Entre as sombras e a luz, existe mesmo algo de mágico nos rumos que a trouxeram até 2022. Há quase 20 anos distante dos palcos, esta que é hoje um ícone das novas gerações parece ter encontrado seu lugar de honra. O disco Blue (1971), à ocasião dos 50 anos de estreia, foi celebrado e redescoberto por uma infinidade de jovens.

Há poucas semanas, Mitchell foi além. Quebrou a promessa do ostracismo e voltou aos palcos. Superando as sequelas de um AVC sofrido em 2015, cantou e tocou sentada em um trono ao lado da amiga Brandi Carlile. Este foi o seu primeiro set completo em mais de duas décadas.

Em uma das mais recentes – e raras – entrevistas, ela disse: “Nós precisamos de deusas, mas não quero ser uma delas”. A esta altura, talvez seja mais apropriado chamá-la de musa, por sua perspicácia e renovação dignas das entidades da mitologia que presidiam a arte e a poesia. Este texto, inevitavelmente, não consegue contemplar a grandeza e a diversidade da obra que criou, mas torna possível pensar sua trajetória a partir de temas e melodias sobressalentes.

 

Clouds (1969)

Joni Mitchell já tinha um disco na bagagem quando lançou Clouds, em 1969. O projeto traz como única companhia o violão, que se desdobra em uma variedade impressionante de sons e sentidos a fim de expor vulnerabilidades. Como nuvens no céu que ora se dissipam, ora impedem o sol de brilhar, ela se coloca diante do ouvinte para expressar o que sente, o que a incomoda, o que a faz simplesmente pensar.

Mitchell também é corajosa em relação às urgências do mundo presente, como a Guerra do Vietnã, então em curso. Foi o conflito, que marcou a sociopolítica daquele fim de década, o responsável por embalar a canção-protesto “The Fiddle and the Drum”. E quando o debate sobre saúde mental sequer tinha sido aprofundado na cultura pop, surgiu a sensível “I Think I Understand”.

As duas grandes interpretações do álbum, no entanto, ficam a cargo de “Chelsea Morning” e “Both Sides Now”, esta última um clássico absoluto, revisitado, inclusive, em um disco homônimo de regravações lançado em 2000. Embora tenha feito duras críticas públicas ao ex-marido, o também cantor de folk Charles Scott ‘Chuck’ Mitchell, deve algumas contribuições a ele, que a certa altura a instigou a ler o romance Henderson, O Rei da Chuva. A obra terminou por inspirá-la e abriu um campo de visão para a literatura inglesa da qual o ex-cônjuge era um especialista.

Ainda que pouco rebuscada, a voz de menina começava aqui a construção de uma narrativa de grande importância – algo que nos trabalhos seguintes passou a agregar referências muito mais herméticas.

Destaques: “Both Sides Now”, “Chelsea Morning” e “The Fiddle and the Drum”

 

Blue (1971)

Em meados de 2017, um grupo de colaboradores da National Public Radio elegeu Blue como o melhor álbum de todos os tempos feito por uma artista feminina. À ocasião, a obra desbancou com unanimidade outros 149 projetos. Mas basta uma audição simples para entender que o motivo pelo qual Blue arrebata corações é a delicadeza, um detalhe que o permite carregar até mesmo no próprio título a sina de ser um disco triste.

A separação cortante entre Joni Mitchell e o músico Graham Nash é o que faz com que a autora se permita transbordar emoções, entre elas uma sensação dual, de perda e adoração, capaz de colocá-la em um patamar de humanidade para com quem escuta.

De pé entre a complexidade e a transparência, Joni escancarou a própria dor sob a perspectiva feminina, cantando, despudorada, versos como “Eu poderia beber uma caixa de você e ainda estaria de pé”, em “A Case Of You”. Ela também propôs subverter o formalismo lírico ao dar vazão a longos diálogos que depois seriam musicados. É o que acontece em “The Last Time I Saw Richard”, canção que encerra a narrativa e, cinquenta anos mais tarde, veio a influenciar letras de nomes como Tim Bernardes.

Honesta e munida de instrumentos intimistas como piano e violão, ela lembra com delicadeza em “Little Green” o nascimento da única filha, entregue à adoção voluntariamente e cujo paradeiro foi desconhecido até o ano de 1997. O elo materno, interrompido, seria lembrado com nostalgia e maturidade uma década mais tarde na faixa “Chinese Cafe/Unchained Song”, do quase esquecido álbum Wild Things Run Fast (1982).

Há, além disso, um tom sedutor empregado em outras músicas como “All I Want”, mas, sobretudo, este é um trabalho em que a força de Mitchell na composição se revelou capaz de sobreviver ao tempo, inclusive atropelando comparações viciosas feitas com colegas homens – uma atitude que por um tempo considerável pareceu necessária para que seu trabalho fosse validado.

Destaques: “River”, “A Case of You”, “The Last Time I Saw Richard”

 

The Hissing of Summer Lawns (1975)

Cada vez mais popular, Joni Mitchell foi uma entre tantos artistas que se lançou à tarefa de estrear um disco por ano ao longo da década de 1970. Os contratos com gravadoras exigiam ritmo frenético, o que em seu caso significou um auge criativo até pelo menos metade do percurso.

Essa afirmação não deixa de ser perigosa por fortalecer leituras de seu trabalho que acabam ofuscando outros momentos significativos. Mas, pese a relevância de projetos como For The Roses (1972) e Court and Spark (1974), quem talvez mais tenha sido ousado nesse sentido foi The Hissing of Summer Lawns (1975).

A esta altura, Joni decidiu deixar de lado a certeza onipresente dos sentimentos para assumir uma postura um tanto esguia. Em meio aos “assobios dos gramados de verão”, que representam uma ironia antimaterialista, ela quis ser um pouco mais despretensiosa em termos líricos, fazendo uma série de inflexões que se voltaram para a estética jazz, uma importante aliada.

A partir do uso intenso do baixo, bastante proeminente em faixas como a que dá título ao material e “Edtih and the Kingpin”, o disco pode ser enxergado hoje como uma espécie de experimento de transição, além de servir como influência para as novas gerações. Saiu daqui o título do disco mais recente do cantor britânico Harry Styles, “Harry’s House”.

Ao lançar mais perguntas do que se dispor a respondê-las, Mitchell ainda se eximiu da responsabilidade de se ser franca o tempo todo – algo que irritou publicações como o Detroit Times, tradicional jornal com quem a cantora teve uma relação um tanto conflituosa no passado. Para os críticos, sua postura passou a ser “presunçosa demais”.

Sem se importar com o que era dito, inclusive, deixando de responder apedidos de entrevista, ela optou por construir personagens quase sempre restritas à terceira pessoa, em geral mulheres em busca de expandir os próprios campos de visão. A atenção dada aos detalhes, conforme se nota, poderia ser tão fértil quanto uma experiência romântica empírica. A liberdade, no mais amplo sentido da palavra, flana por entre paisagens e transeuntes dando origem ao hit “In France They Kiss on Main Street”.

Destaques: “In France They Kiss On Main Street”, “The Hissing Of Summer Lawns”, “Harry’s House/Centerpiece”

 

Hejira (1976)

Todas as honras para este que é um dos trabalhos mais celebrados de Joni Mitchell. São apenas nove faixas distribuídas entre 52 minutos, tempo suficiente para uma viagem rápida, mas no oitavo disco da carreira somos conduzidos por um percurso musical denso em que o próprio título já entrega a que veio. “Hejira” nada mais é do que uma referência extraída do Alcorão, o livro sagrado do islamismo, e simboliza o êxodo. Mais precisamente, é o nome dado à jornada trilhada pelo profeta Maomé entre as cidades sagradas de Meca e Medina, no ano 622.

A religião não chega a ser tema das letras, mas é curioso como a artista constrói um relato minucioso, centrado no que cruza seu caminho. Na contramão do que realizou na empreitada anterior, a maioria das canções agora abraça a experiência viva, tendo sido escrita durante uma viagem de carro entre o estado do Maine e a Califórnia logo nos primeiros meses de 1976.

As ranhuras da pista, as vitrines e a neve, que se acumulava do lado de fora, acabaram vertidos em paisagens provocativas. Até mesmo a fotografia de capa, depois resgatada também na coletânea Songs of a Prairie Girl, é um registro da parada que Mitchell fez com os companheiros de banda no lago Mendota, ocasião em que a cantora calçou os patins e foi se divertir.

No fim das contas, o álbum foge à regra dos clássicos livros de viagem à la On The Road, de Jack Kerouac, ao impor uma visão menos transgressora dos itinerários. O grande trunfo talvez esteja na atenção que se dá aos pormenores e às situações inusitadas, como quando a autora conversa com um coiote à beira da estrada ou se metamorfoseia em um corvo.

Outro destaque éSong For Sharon”, uma longa canção composta em fluxo de consciência. Nela, Mitchell narra uma série de pensamentos que ocorreram durante um passeio pelas ruas de Staten Island, em Nova York, quando saiu para comprar um bandolim. A ironia contida nos versos se dá pelo fato de que o enredo é dedicado à melhor amiga de infância, que sonhava em ser uma cantora profissional. Contrariando o destino, Joni só queria ser uma mulher simples – justamente o que Sharon se tornou.

Destaques: “Coyote”, “Song for Sharon” e “Black Crow”

 

Turbulent Indigo (1994)

Os chamados Distúrbios de Los Angeles, que tomaram conta da cidade em abril de 1992 após quatro oficiais do Departamento de Polícia local (três deles homens brancos e um de origem hispânica) serem absolvidos depois de espancar o motorista negro Rodney King, são o tema de “Sex Kills”. Visceral, esta é uma das grandes canções do álbum Turbulent Indigo, lançado em 1994.

A música não trata, exatamente, sobre sexo como o título sugere, e sim sobre um tipo de caos generalizado, sobre pequenos apocalipses diários. Entre metáforas, Joni versa sobre injustiça em uma reflexão que se vê mais atual do que nunca ao criticar o consumismo exagerado da sociedade norte-americana, em detrimento de outras questões como a luta por igualdade e a defesa do meio ambiente.

Com um timbre levemente gutural e, finalmente, entregue à elegância do jazz, ela se aprofunda também no drama das Lavanderias de Madalena, uma espécie de internato feminino comandado por freiras irlandesas. Anos mais tarde, após sua desativação e uma série de denúncias ter vindo à tona, descobriu-se que o espaço era palco de múltiplos tipos de abuso.

Entre as vítimas desse sistema opressor em que jovens mulheres consideradas imorais eram enviadas para se “endireitar” está a também cantora Sinéad O’Connor, de quem Mitchell sempre se declarou fã. Sarcástica, a balada “Magdalene Laundries” reconstrói por meio de imagens poéticas o modus operandi de um sistema machista e opressor, que tentou, do mesmo modo, dilapidá-la muitas vezes. Em síntese, a faixa é uma ode às vítimas.

Não que este seja, necessariamente, o último grande disco de Joni Mitchell, mas há que se reconhecer que lhe sobra unidade em relação ao trabalho seguinte, Taming the Tiger, muito mais difuso em termos de escolhas sonoras.

Destaques: “Sex Kills”, “Magdalene Laundries” e “Last Chance Lost”

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ARTISTA: Joni Mitchell