5pra1: Ryuichi Sakamoto

Uma celebração a um artista camaleônico, inventivo e singular

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Fotos: NSS (Zakkubalan)

A série 5pra1 apresenta e destrincha cinco discos que servem como primeiro mergulho na obra de um artista.

 

Enquanto finalizo esse texto, passando a limpo uma empreitada na qual estou trabalhando há várias semanas, recebo a notícia da morte desse incrível compositor que foi Ryuichi Sakamoto. Espero que esse especial sobre o músico japonês ajude a traçar algumas linhas gerais sobre seu trabalho e a introduzir sua obra para aqueles que ainda não a conhecem, porque escolher cinco álbuns para falar de Ryuichi Sakamoto será inevitavelmente reduzir o alcance de um artista multifacetado, camaleônico e, é claro, histórico.

No fim, esse 5pra1 será uma microdose dessas mudanças, tentando dar conta da diversidade do trabalho de Sakamoto apenas por meio de vestígios. Escolhi alguns trabalhos emblemáticos de sua trajetória e outros nem tanto – deixei de fora, por exemplo, todos os álbuns da Yellow Magic Orchestra, por considerar que esse seja um acontecimento à parte de sua carreira. Mas escolhi uma trilha sonora, justamente a sua estreia nesse universo, que, embora seja quase como uma carreira paralela para o músico, representa grande parte de sua figura artística.

É interessante notar como a trajetória de um artista avança a partir do seu ponto de origem, quais são as evoluções e os desvios de percurso depois daquele ponto de largada. A carreira de Sakamoto se alastrou em forma de espiral, como se ele fosse capaz de ocupar um espaço tridimensional dentro do nosso imaginário. Há nos seus primeiros álbuns a música eletrônica cosmopolita. Há também, em algum meio do caminho, após ser convidado para atuar no cinema, uma incursão que o transformou em um dos mais reconhecidos compositores de trilha sonora. Finalmente, já no final de sua carreira, emerge a gênese de uma postura filosófica diante da vida, truísmos sonoros sobre como a cadência musical representa o tempo e avança junto com ele, ou mesmo altera nossa percepção desse tecido que nos constitui.

 

Thousand Knives Of Ryuichi Sakamoto (1978)

Thousand Knives é o álbum de estreia de Ryuichi Sakamoto. Lançado em 1978, o trabalho deslanchou sua carreira enquanto, simultaneamente, ele estreava como parte da Yellow Magic Orchestra – mostrando que Sakmato estava, também, destinado a uma carreira solo frutífera e tão interessante quanto a do famoso projeto.

Thousand Knives é um álbum frugal, com acentos coloridos, mas muito diverso. Nele, guitarras abrasivas e percussões borbulhantes dividem o espaço com arpejos cristalinos e melodias meditativas. O clima parece ser influenciado pelo acid house, apresentando uma  música uptempo e despojada, e a heterogeneidade como marca registrada. No entanto, é fácil se enganar com as aparências por aqui, porque o debute de Sakamoto pode soar bastante pretensioso em alguns aspectos, já que este álbum experimenta com um princípio que balizou grande parte de sua carreira: a tentativa de absorver uma grande quantidade de informações, vindas de contextos diferentes, em uma coisa só.

A faixa-título, por exemplo, começa com o músico declamando, através de um vocoder, “Jinggang Mountain”, um poema escrito por Mao Tsé-Tung. A inspiração da faixa, no entanto, atravessa os hemisférios e olha tanto para o jazz de Herbie Hancock quanto para o reggae. Já “Island of Woods” é uma composição de sintetizador analógico de 10 minutos elaborada para soar como os sons naturais de uma ilha. O resultado é caótico e experimental, um pouco à maneira de Several Species Of Small Furry Animals do Pink Floyd, mas transportada para o universo eletrônico. Um terceiro exemplo do remix cultural que Sakamoto experimenta está na faixa “The End of Asia”, que usa a melodia de “The East Is Red”, o hino nacional da República Popular da China durante a Revolução Cultural.

Thousand Knives é marcado por uma miscelânea de interesses e assuntos, amalgamados pela música eletrônica, o que viria a se tornar um dos grandes interesses de Sakamoto ao longo de sua carreira. Aqui, não há distinção entre pop e experimentalismo, e é a partir dessa fusão indiscriminada que a carreira de Sakamoto vai se alastrar.

Destaques: “Thousand Knives”, “Island of Woods”, “The End of Asia”

 

Merry Christmas, Mr. Lawrence (1983)

Merry Christmas, Mr. Lawrence (traduzido como Furyo, em Nome da Honra no Brasil) é um filme de 1983 que conta a história de um prisioneiro de guerra no Japão durante a Segunda Guerra Mundial. Na época, o diretor Nagisa Ōshima convidou Ryuichi Sakamoto para atuar ao lado de David Bowie como protagonistas da trama – um oficial japonês e um capturado americano sendo curiosamente representados por dois músicos revolucionários.

Sakamoto aceitou o papel com a condição de compor o tema do filme, e nesse movimento, acabou por criar um dos temas mais poderosos e belos do cinema, que venceria o prêmio BAFTA. Trata-se de uma peça de música eletrônica delicada, comovente e sentimental, que mescla o ocidente e o oriente por meio de sintetizadores e percussões tradicionais japonesas. A ideia de choque cultural aparece novamente por aqui, no entanto, é explicitada pelo imaginário da guerra. Sobre esse tema, a música de Sakamoto aparece como harmonia que recontextualiza diferentes visões de mundo.

Sakamoto descreve a oferta para aparecer em Mr. Lawrence como “o maior e mais importante momento de sua minha vida”; o curioso é que David Bowie não participou da trilha sonora porque preferiu se dedicar a seu papel como ator. Depois dessa empreitada, Sakamoto viria a se tornar um premiado compositor de trilhas sonoras icônicas de grandes produções. No seu currículo estão filmes como O Último Imperador (1987), O Céu que nos Protege (1990) e Me Chame Pelo Seu Nome (2018).

Destaques: “Merry Christmas, Mr. Lawrence”, “Before the War”, “Germination”

Beauty (1990)

Beauty é o melhor exemplo das pretensões megalomaníacas de Sakamoto, contando com a participação de bastiões da música mundial como Brian Wilson, Sly Dunbar, Arto Lindsay, Robert Wyatt, entre muitos outros. É, aliás, muito interessante notar essa faceta do músico em contraste com a sua fase mais tardia, que viria a se tornar muito mais econômica e minimalista.

Influenciado pelo que era chamado na época de world music, o álbum apresenta um andamento midtempo, sempre suntuoso e ondulante e é notável por sua colagem de estilos que vão do techno ao flamenco. Contando com um super-time em sua produção, o álbum está impresso com o selo de qualidade das grandes produções hi-fi dos anos 1990, na qual o verniz acetinado das canções denotava viagens entre os grandes estúdios em Los Angeles e Nova Iorque. Beauty talvez seja o álbum que melhor demonstre a ideia de sightseeing music, que influenciava os membros da Yellow Magic Orchestra. Trata-se de uma maneira de pensar, fazer e escutar música em que artistas absorvem influências da música mundial e as traduzem de acordo com suas próprias experiências individuais.

O resultado é uma música múltipla e despreocupada com a ideia de fronteiras. Por exemplo, ao falar sobre a faixa “Calling from Tokyo”, que, como o nome diz, fala sobre o Japão, Sakamoto evoca um imaginário amazônico: “para uma das minhas canções no álbum Beauty, eu estava sempre tendo visões da floresta amazônica, um aviãozinho voando muito baixo sobre as árvores. Árvores, árvores, árvores e alguns pássaros”.

Beauty também é o registro do apreço do músico pela música brasileira, que viria a se desenvolver, entre outras ocasiões, através de parceria entre ele e o casal Jacques e Paula Morelenbaum. Aqui, vale destacar a faixa “Rose”, que conta com um poema em português lido por Arto Lindsay.

Destaques: “Calling from Tokyo”, “Rose” e “Diabaram”

BTTB (1999)

BTTB significa “back to the basics” e marca uma virada do expressionismo de seus imensos álbuns anteriores, para um novo momento na carreira de Sakamoto. Como o próprio nome diz, temos uma volta ao compositor sentado em frente ao seu piano. É um marco de transição – sem querer a pretensão de colocar a complexa carreira de Sakamoto numa linha reta – em direção a algo mais sutil e meditativo, um mergulho numa dimensão interior.

O álbum é contextualizado por um momento histórico no qual o Japão passava por uma estagnação econômica, após duas décadas de otimismo tecnológico e consumismo que haviam marcado o país. O país das intensas cargas horárias de trabalho e daquele famoso cruzamento em Shibuya é o cenário no qual nasce BTTB, um álbum que rejeita os valores estressantes da vida moderna e propõe uma tentativa de pausa e retorno para algo mais fundamental e interno.

A ocasião de nascimento do álbum traz um peso simbólico desse país simultaneamente tecnológico e estagnado. Em algum momento no final dos anos 1990, o compositor ficou preso em um engarrafamento em Tóquio. Uma melodia surgiu em sua cabeça enquanto ele dirigia; durante a paralisação, ligou para casa e cantou na secretária eletrônica. A melodia viria a se tornou “Opus”, a faixa de abertura de BTTB.

O sentimento de ouvir BTTB foi muito bem descrito pelo escritor Haruki Murakami, que traduzo aqui: “Música pessoal e íntima – alguém (alguém anônimo) sentado sozinho em frente ao piano de manhã cedo, tecendo uma melodia, explorando harmonias. Música que gradualmente preenche um espaço com pé direito alto e que contém a presença flutuante da chuva. Mas a música deixa lacunas quando necessário. De vez em quando, precisamos de músicas assim e desse jeito de ser… Não, talvez o tempo todo. Precisamos deles tanto quanto precisamos de café preto quente ao raiar do dia e de um gato cochilando ao nosso lado à tarde”.

Destaques: “Opus”, “Baqueta” e “Aqua”

async (2017)

Após se recuperar de um câncer, e depois de passar oito anos dedicado às trilhas sonoras, Sakamoto resolveu voltar a trabalhar num álbum solo. Diante da experiência da doença que havia enfrentado, meditando sobre a vida e a morte, concebeu async, um álbum cuja música se confunde com o seu método filosófico. Em async todos os sons orbitam uns ao redor dos outros, mas nunca se encontram dentro de uma harmonia. Para o compositor, cada ruído, textura ou timbre é significante por si mesmo e sua importância vem do fato de simplesmente existirem.

As inspirações para a composição de async vêm de diversos lados, como as estruturas minimalistas de Debussy, ou o free jazz de John Coltrane. Outra ideia que baliza o projeto é a tentativa de conceber uma trilha sonora para um filme de Andrei Tarkovsky que não existe. Já a instrumentação inclui tanto instrumentos convencionais de orquestra, como gravações de campo e piano desafinados.

No meio de toda essa amálgama de ideias e sentimentos que levaram Sakamoto a compor async existe uma muito emblemática: a utilização de um piano que havia sobrevivido a um tsunami. Um instrumento que resistiu ao fardo do tempo, sendo modificado tanto pela força da natureza quanto pela ação humana e que, mesmo em seu timbre desafinado e irregular, ainda era capaz de transmitir beleza, simboliza um processo de cura fundamental para o artista.

Sobre o álbum, Sakamoto disse: “mesmo antes de eu encontrar o piano do tsunami, sempre senti o instrumento como uma extensão de meu corpo. No entanto, depois, comecei a pensar sobre sua montagem, seus materiais, feitos de pedaços da natureza que os humanos modificaram com seus métodos artificiais. Então eu tive que pensar novamente sobre minha fundação, e isso abriu novos horizontes para minha imaginação musica”.

Destaques: “andata”, “async”e “LIFE LIFE”

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Autor:

é músico e escreve sobre arte