5pra1: Wilco

Cinco discos – além de “Yankee Hotel Foxtrot” – para entender por que Jeff Tweedy e sua trupe são ícones do rock alternativo

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Fotos: Jim Cooper/AP/Shutterstock

A série 5pra1 apresenta e destrincha cinco discos que servem como primeiro mergulho na obra de um artista.

 

Já vou dizendo logo de cara: não tem Yankee Hotel Foxtrot nessa lista. Acredite, você não precisa de mais um texto te dizendo para ouvir o Yankee Hotel Foxtrot ou mais uma história sobre como esse é o álbum mais importante do Wilco e um dos discos mais emblemáticos de toda a história do rock alternativo.

Não tem Yankee Hotel Foxtrot nessa lista, porque quem manja muito de Wilco e chega numa seleção como essa provavelmente já leu tudo que precisava sobre o Yankee Hotel Foxtrot. Não tenho pretensão de achar que tenho algo novo a dizer sobre ele. Já quem não manja muito de Wilco e quer conhecer melhor a banda também não precisa ler nada sobre o Yankee Hotel Foxtrot, porque manjar um pouquinho de Wilco muito provavelmente significa conhecer alguma coisa sobre o Yankee Hotel Foxtrot. E quem chega numa lista como essa querendo apenas confusão com a autora não precisa ir longe, te entrego uma treta no segundo parágrafo. Nessa humilde curadoria que busca capturar um pouco do que é o Wilco, não tem Yankee Hotel Foxtrot. Fight me.

Isso não quer dizer que o Yankee Hotel Foxtrot não cumpre a missão de capturar aquilo que o Wilco é/ou representa. Pelo contrário, talvez ele seja o álbum que faça isso de maneira mais brilhante e precisa. Lançado em 2002, é o trabalho em que Jeff Tweedy, um maluco fissurado por música vindo do Meio-Oeste dos Estados Unidos, consegue conjurar não só o amplo leque de influências que o levaram até aquele momento – de The Replacements a The Clash, passando por Big Star, Neil Young e os Beatles no que eles têm de mais terno e psicodélico – como também foi capaz de desconstruir todas elas para colocar de pé algo seu. Tudo isso, claro, ao lado de alguns parceiros geniais, como o baixista John Stirratt, seu fiel Sancho Pança, o baterista Glenn Kotche, que estreava na banda já deixando sua marca, Jim O’Rourke na produção e Jay Bennett, sobre o qual falaremos depois. Junte a isso o tempero do mal-estar estadunidense no ano de 2001 e o que se tem é o trabalho que rendeu à banda um 10 cravado na Pitchfork, além de uma história de bastidores mitológica, capaz de alçar esses tiozinhos do alt-country ao status de rockstars.

Se não fosse por Yankee Hotel Foxtrot, talvez não estivéssemos aqui hoje falando de Wilco mais de 20 anos após o seu lançamento. Mas se estamos aqui, é também porque ao longo desse tempo a banda – hoje já em uma formação diferente, mas ainda com Tweedy, Stirratt e Kotche na linha de frente – segue prolífica, colocando seus barulhos estranhos e bonitos no mundo. Ao todo são 12 álbuns de estúdio, um registro ao vivo (Kicking Television, lançado em 2005), além do projeto Mermaid Avenue – álbuns gravados em parceria com Billy Bragg a partir de músicas que Woody Guthrie escreveu no fim da vida.

Mais do que uma banda, o Wilco hoje é uma ideia, um estado de espírito, com dois festivais próprios (Solid Sound, que acontece a cada dois anos nos arredores de Boston, com exposições de arte contemporânea, oficinas diversas, e shows; e Sky Blue Sky, em um resort no México, quase um cruzeiro para indies) e uma série de projetos derivados. Tem muita música, mas também tem livro, fotografia e até um programa de auditório improvisado, transmitido no Instagram entre 2020 e 2021. Também faltaria espaço nessa revisão para listar todos os acontecimentos de relevância mundial que dialogam com os temas da banda e estão presentes não só em Yankee Hotel Foxtrot, mas em tudo que veio antes e depois dele.

Já faz mais de 20 anos que o mundo está acabando e o Wilco segue fazendo música e lançando álbuns em meio a esses escombros. Por que deixar todas essas histórias e possibilidades a cargo de um álbum só? Com vocês, cinco discos para entender – e gostar – de Wilco.

 

Being There (1996)

Being There é o segundo álbum de estúdio do Wilco, mas poderia muito bem ser o primeiro. AM, de 1994, foi em boa parte herdado do Uncle Tupelo, uma das pioneiras do alt-country, em que Jeff Tweedy e Jay Farrar dividiam (e disputavam) as composições. Com a saída de Farrar, o Wilco se forma quase que instantaneamente, com os mesmos membros remanescentes e Jay Bennett na guitarra. Talvez por isso, é apenas em Being There que Jeff Tweedy se mostra livre para apostar em sua visão criativa. Bem antes de Yankee Hotel Foxtrot, ele já mostrava a inclinação para explorar o alt-country em diferentes facetas, num trabalho de construção, aperfeiçoamento e desconstrução.

Isso é feito por meio de uma espécie de antropofagia de influências, unindo Bob Dylan, Rolling Stones e música gospel brejeira em uma coisa só. Esse é o alt-country de Jeff Tweedy, que já chega com o pé na porta: em “Misunderstood”, faixa de abertura, Tweedy se posiciona como o eu-lírico inadequado e incompreendido, acertando as contas com sua cidade natal. Como se cutucasse Farrar, o amigo de adolescência que o acusava com frequência de ser chorão, ele encerra a música com versos que até hoje são fonte de catarse nos shows da banda: “I’d like to thank you all for nothing, I’d like to thank you all for nothing at all. Nothing, nothing, nothing at all”. Brabo.

Convenhamos: Being There é um pouco longo demais (na época do lançamento, rolou briga entre Jeff Tweedy e a gravadora, Reprise Records, que não quis bancar a extravagância de um disco duplo), mas se reclamo é porque algumas músicas incríveis acabam meio perdidas, como é o caso de “Hotel Arizona”, “Far, Far Away” e “Say You Miss Me”. Se você é fã de Wilco e não ouve alguma delas faz tempo, sugiro que se dê esse presente agora mesmo. Em compensação, canções como “Misunderstood” e “Sunken Treasure” se tornaram pilares importantes para o que viria a seguir. Nas palavras de Chris DeVille, duas “torres gêmeas tão significantes para o legado do Wilco quanto aquelas do ponto turístico de Chicago que aparecem na capa do Yankee Hotel Foxtrot”. Quem se aventura até o topo, pode contemplar a paisagem que essa banda é capaz de pintar.

Destaques: “Misunderstood”, “Sunken Treasure”, “Red Eyed and Blue”

 

Summerteeth (1999)

Se Being There é a carta de intenções de Jeff Tweedy, Summerteeth é o Wilco de Jay Bennett. Se para uns ele é como um vilão – em I Am Trying To Break Your Heart, documentário de Sam Jones, ele é retratado como pretensioso e cabeça dura –, para outros ele é uma figura injustiçada, posto que é muito responsável pela complexidade e sofisticação até hoje define o que é o Wilco. Gosto de pensar em sua figura como uma espécie de Lila Cerullo para a Elena Greco que é Jeff Tweedy.

Essa é uma parceria tão brilhante quanto autodestrutiva, como uma estrela que explode no céu, e Summerteeth capta exatamente qual seria esse som, com novas sonoridades e possibilidades. Summerteeth tem psicodelia e power pop, muita cor e novos instrumentos –é o Sgt. Peppers deles. Mas por trás da melodia eufórica, as letras revelam um Jeff Tweedy tenso, longe de si mesmo e da própria família, usando a música como âncora que sustenta e afunda ao mesmo tempo. A mistura desconfortável aparece em faixas de refrãos que repetem uma mesma frase, num crescendo infinito, como “A Shot in the Arm”, ou até mesmo nos títulos em que as palavras se emendam, como é o caso de “Nothing’severgonnastandinmyway(again)”. E quando a poeira abaixa, o que fica é a devastação, como capturada perfeitamente em “Via Chicago”.

A genialidade do Yankee Hotel Foxtrot não existiria sem Jay Bennett, e Summerteeth nos mostra isso, mas, para que a equação entre os dois finalmente se resolvesse, seu sacrifício talvez tenha sido tão fundamental quanto sua presença. A gente sabe como essa história termina: Jay Bennett foi demitido do Wilco no meio das gravações de Yankee Hotel Foxtrot, em 2001, quando as divergências criativas (e a briga de egos) entre ele e Tweedy ficaram insustentáveis.

Destaques: “A Shot At The Arm”, “She’s a Jar”, “Pieholden Suite”

 

A Ghost Is Born (2004)

Depois de receber uma nota 10 da crítica por Yankee Hotel Foxtrot, A Ghost Is Born, que marca a volta do Wilco aos estúdios, ganhou um 6.6 decepcionado da Pitchfork e, curiosamente, os dois únicos Grammys da banda até hoje. É um disco de ressaca – não só criativa, mas também literal. O álbum foi gravado no período mais duro do vício de Jeff Tweedy em opióides, ponto baixo o suficiente para que ele confessasse em sua autobiografia que fez o álbum para que, no futuro, seus filhos pudessem ouvir e tentar entender o que havia acontecido com o pai.

O fantasma do título é ele próprio, que usou a música para traduzir sua angústia e, principalmente, as crises de enxaqueca que o deixavam maluco. Por essa explicação fica mais fácil entender a escolha por faixas longas, algumas com muito mais ruído do que música, como é o caso de “Less Than You Think”, de 15 minutos no total e menos de 3 de melodia. Mais da metade de “At Least That’s What You Said” é preenchida por um solo de guitarra barulhento, enquanto “Spiders (Kidsmoke)” repete incessantemente as mesmas notas. Não à toa, A Ghost Is Born foi o disco que mais ouvi durante os períodos mais duros de isolamento da pandemia.

Mas nem só de dor e angústia que se vive. No livro Vamos nessa (para poder voltar), Tweedy define A Ghost Is Born como sua arca de Noé: à beira de uma tempestade, as faixas indicavam tudo de bom sobre ele mesmo que merecia ser salvo. Por isso, é aqui que encontramos a adorável “Hummingbird”, a música mais sexy do Wilco, “Wishful Thinking”, e também a belíssima viola de “Muzzle of Bees”. Esses triunfos servem para lembrar que o Wilco nunca foi só Jeff Tweedy, e aqui brilha a engenharia de som de Mikael Jorgensen, as percussões sofisticadas de Glenn Kotche combinadas ao baixo de John Stirratt, além da guitarra de Jeff, que não faz feio nos grandes solos. O resultado pode até ser excessivo e meio autoindulgente em seu flagelo, mas é um registro humano, demasiado humano, de uma mente criativa em seu limite, na busca de salvação.

Destaques: “At Least That’s What You Said”, “Muzzle of Bees”, “Wishful Thinking”

 

Sky Blue Sky (2007)

Depois da tempestade, céu azul. Sky Blue Sky é o primeiro disco com a formação completa desse Wilco que conhecemos hoje, com Pat Sansone e Nels Cline integrados oficialmente ao conjunto. Mas em vez de explorar ao máximo até onde todos poderiam, o álbum vai em direção quase oposta, priorizando a simplicidade e sutileza – e foi gravado quase que majoritariamente ao vivo em estúdio, sem as estripulias que até então eram marca registrada do grupo. Agora sóbrio e em recuperação, nosso amigo Jeffinho também decide escrever de maneira direta, sem grandes abstrações, num gesto de humildade e autocompaixão. O resultado é íntimo, delicado, sensível.

Para quem ouve, contudo, Sky Blue Sky passa longe de ser um trabalho modesto. Se Summerteeth é o disco de Jay Bennett, esse é definitivamente o disco de Nels Cline, um dos melhores guitarristas do mundo. O disco é dele não só porque por conta de “Impossible Germany”, um petardo na obra da banda graças ao seu antológico solo, mas porque o repertório de jazz que Cline traz na manga adicionou uma nova e interessante camada à sonoridade do Wilco. Faixas como “Side With The Seeds” e “You Are My Face” mostram que a influência do rock setentista de Neil Young, Lennon e McCartney segue no DNA do sexteto de Chicago, mas agora com um novo tempero, novas texturas e harmonias.

Também é no Sky Blue Sky que surgem  ambiências complexas e delicadas construídas pela sinergia que existe, em especial, no trabalho de Glenn Kotche, Mikael Jorgensen e Pat Sansone, que pedem ao ouvinte atenção, silêncio e contemplação. Hoje, essa é uma característica que os define quase tanto quanto as desconstruções e barulheiras doidas, e nos lembra que o Wilco não é simplesmente uma metonímia para aquilo que Jeff Tweedy faz, por mais que seja ele o líder, principal compositor, e grande responsável pela mística que acompanha a banda até hoje. O Wilco sempre teve muito de todos que ajudaram a construí-lo, mas é aqui que eles enfim soam como uma banda em perfeita harmonia, com todas as partes mostrando o que podem oferecer de melhor não para si, mas para o todo. Sky Blue Sky confundiu sábios e uma apressada Pitchfork lhe concedeu a nota 5.2 – para, no ano passado, assumir a culpa e subir a avaliação para 8.5.

Destaques: “Impossible Germany”, “Side With The Seeds”, “On and On and On”

 

Cruel Country (2022)

Nesses 15 anos de pax wilcana, o Wilco esteve mais livre do que nunca para explorar aquilo que gostam, sem as tretas com a gravadora (os últimos quatro álbuns da banda foram lançados sob selo próprio, a dBpm Records), sem conflitos de ego e até mesmo sem qualquer obrigação de provar ao mundo alguma coisa. O resultado dessa calmaria, para muitos, foi uma espécie de zona de conforto, com trabalhos de qualidade consistente, mas que não impressionam, tampouco fazem barulho, como seus antecessores.

De fato, é difícil equiparar álbuns como Star Wars, Schmilco e Ode To Joy com seus antecessores, mas a banda navega num suingue interessante pela contemporaneidade. Prova disso é Cruel Country, lançado em 2022, novo ponto luminoso na discografia da banda, que condensa um pouco de tudo que eles fizeram nesses últimos anos, com o amostras do legado que a trouxe até aqui.

Com 21 faixas de pouca guitarrêra e muitas baladas acústicas, o disco é um mergulho na música country de uma forma que não se ouvia no WIlco, talvez, desde os tempos de AM e Being There – já na primeira faixa, “I Am My Mother”, Tweedy soa mais dylanesco do que nunca. Se o mal-estar do início do século 21 era o panorama social que inspirava a angústia que pautou os primeiros trabalhos, aqui a vocação política da banda ressurge numa espécie de prestação de contas após quatro anos de governo Trump, dois de pandemia e a ascensão do conservadorismo de extrema direita. O país cruel deles é os Estados Unidos, mas após o primeiro turno das eleições fui dormir com o refrão de “Hints” na cabeça: “There is no middle when the other side would rather kill than compromise”.

Contudo, não se trata de um álbum pessimista. Após dois anos de isolamento, o pequeno milagre da sobrevivência não passa despercebido e a luz aparece, seja na delicadeza das melodias, seja no teor amoroso das letras, que não falam exatamente de ua amor romântico, mas do amor que sentimos por aqueles que lutam do nosso lado e trazem leveza aos dias mais duros.

Assim como em Sky Blue Sky, o álbum foi gravado inteiro ao vivo em estúdio, priorizando simplicidade e sutileza, mas ainda com certa abertura para experimentações em cima do cancioneiro clássico estadunidense. As letras são sóbrias, reflexivas, mostrando banda e artistas num estágio de maturidade criativa, do tipo que confia o suficiente no próprio taco para se permitir alongar em tempos de aceleração constante. Sai ganhando quem se dispõe a ouvir e admirar as nuances, como quem se entrega a uma sessão de 3h de faroeste só pela trilha de Morricone. Poder ouvir isso hoje é também tirar um tempo para reconhecer essa coisa bonita que é estar vivo e presente nesse mundo, apesar de tudo que ele tem de profundamente cruel.

Destaques: “I Am My Mother”, “Bird Without A Tail – Base Of My Skull”, “Hearts Hard To Find”

 

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ARTISTA: Wilco