Punhal em riste

Alice Caymmi prova que seu sobrenome tem, sim, uma bela história, mas é na traição dela que a cantora encontra o seu desconfortável espaço de glória

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Fotos: Caio Galucci

Parente é serpente (1992) é um dos melhores filmes do diretor italiano de cinema Mario Monicelli. Nele, um casal de idosos recebe filhos e netos em sua casa no Natal. No meio das celebrações, a avó pede aos filhos que decidam entre si qual deles levará a ela e a seu marido para viver com eles – uma vez que estão ficando velhos. Ninguém quer carregar o triste fardo familiar e, a partir daí, um jogo de humor negro se instala, culminando no final em que a única saída é matar os dois.

Isso posto, fico aqui pensando se Alice Caymmi, lá no fundo, em um fundo bem escondido, não invejou, em certo momento, a decisão violenta dos personagens desta trama. Isso porque, em março deste ano, ao invés de receber alfinetadas dos parentes na mesa de jantar – como já é de costume –, a cantora viu sua própria tia atacá-la, em meio a uma série de outras personalidades, em uma entrevista para a Folha de S. Paulo. Inteligente, no lugar de deixar-se cair em uma infinita batalha de grandes egos, canalizou toda a sua energia em entregar um novo disco aos seus fãs. Estes, inclusive, são muitos – principalmente depois do sucesso Pop de Alice (2018).

Na contramão de qualquer expectativa, ela lança Electra. O álbum, evidentemente, é inspirado na personagem grega de mesmo nome que, na peça do trágico poeta Eurípedes, tenta vingar a morte de seu pai. No entanto, o resultado da missão da protagonista termina no assassinato de sua própria mãe.

O LP de Alice, contudo, é menos apoteótico: 100% fundamentado em voz e piano. Electra foi gravado em dois dias nos estúdios da Red Bull Station, com o auxílio do pianista Itamar Assiere e repertório garimpado a quatro mãos, junto de Zé Pedro, diretor artístico do selo Joia Moderna, pelo qual o disco é lançado. Foram resgatadas faixas de artistas diversos como Tom Zé, Maysa e Tim Maia. Apesar dos nomes serem populares, o repertório soa inédito haja visto que boa parte das canções selecionadas não fazem parte da cartilha de hits destes ídolos da MPB.

Para quem estava bombando nas pistas de dança com um single ao lado de Pabllo Vittar (“Eu te avisei” de Alice), não era de se esperar uma investida como essa que parece andar na contramão do caminho pelo qual apontava o seu sucesso. Era possível presumir, até mesmo, que os novos fãs – filhos desta fase “baladeira” – se afugentariam de uma proposta como a de Electra. Curiosamente, isso não aconteceu. “É uma loucura! Eles estão amando, estão emocionados, estão sendo atravessados pelas canções”, conta Alice, surpresa, em entrevista ao Monkeybuzz. “Eu tive muita ansiedade ao lançar esse disco. Tinha medo que as pessoas que vieram com o Alice fossem estranhar muito esse trabalho. Ou então, nem prestar a atenção, deixar para lá, sei lá. Só que, por sorte, estou sendo surpreendida por essas pessoas. O público tem o coração e o ouvido aberto – não são simplistas, muito pelo contrário.”

Neste novo trabalho, a voz de Alice é que domina os holofotes. É por meio dela que a cantora carrega as canções com sua personalidade e força. Ela se vale das músicas e de suas letras de tal modo que o ouvinte chega a se questionar se não foi a própria Alice que escreveu as palavras ali proferidas. A potência vocal, evidentemente, vem de família. Mas, esse disco traz uma surpresa no quesito árvore genealógica totalmente inédita: seu pai, Danilo Caymmi, é o autor da última faixa “Aperta Outro”.

Se o álbum foi produto dessa gravação entregue, feita em tempo recorde, o show de Electra é seu exato oposto. Trata-se de um espetáculo teatral, com construção solene e funciona realmente como uma peça – tipo de apresentação cada vez mais raro de se ver na música nacional. Paulo Borges, idealizador e diretor criativo do São Paulo Fashion Week, retoma aqui sua parceria com a cantora iniciada no show Rainha dos Raios (2015). Ele volta a dirigir Alice em cena no que promete ser um dos mais belos shows de 2019. Electra estreou no palco do CCSP, nos dias 19 e 18 de junho, com sala cheia e público atento. Ao entrarmos na sala Paulo Autran, o famoso teatro de arena do Centro Cultural, Alice já estava imóvel sentada em uma mesa com maçãs, copos d’água e um pão, todos espalhados.

Moda para mim é expressão: moda e música andam de mãos dadas. Acho que a gente não se expressa sonoramente sem ter uma cama estética por trás e isso tem muito a ver com roupas, com quebra de paradigmas, com quebra de silhueta, de gênero, de tudo. A moda é fundamental para o meu trabalho – Alice Caymmi

Quando a performance realmente se inicia, a protagonista se levanta e constrói sua mise-en-scène naquele pequeno espaço. Cantando canções de Electra e de seus outros álbuns, Alice segue a costura minuciosa de Paulo. “Tem o disco, o Electra, e tinham algumas músicas que a Alice já queria trazer. Essa escolha de faixas de outros discos foi feita por meio de uma conversa entre ela, eu e o Zé Pedro, mas a ordem, nesse sentido cênico, eu que elaboro”, explica o diretor a respeito do seu papel no projeto.

Electra, enquanto espetáculo, é curioso porque transita entre a clássica imagem de força (dura, fechada e impenetrável) e a sua versão mais realista expressa, é claro, em vulnerabilidade total. “Mãe Solteira”, por exemplo, é entoada dolorosamente por Alice sobre uma escada de madeira rústica. “Meu Recado” surge relida ao piano, com a cantora sobre uma banqueta que, naquele contexto, fazia as vezes de púlpito.

A alegoria

Uma mesa, duas banquetas, uma escada, uma corda, sete maçãs vermelhas, sete copos d’água, um pão e um punhal.

A maçã é a seminal definição de céu e inferno delimitada quando Eva morde o fruto proibido – começam aí também diferentes questões relacionadas ao feminino. Água e pão sobre a mesa formam uma espécie de Santa Ceia solitária dessa Electra, representada fundamentalmente no punhal, com o qual Alice dança durante o show. O punhal, por sua vez, é a arma da vingança e do rancor na peça de Eurípedes, porém também é o sinônimo de força em Iansã – homenageada em seu disco Rainha dos Raios. Tudo fala neste teatro de cantora.

“O cenário é muito simples, são dois cavaletes (R$ 20 cada), um tampão de porta (R$ 60) e a escada (R$ 100). A ideia é essa mesma: tudo muito cru, tudo muito essencial: e ela! É um ringue dela, um tablado dela”, explica Paulo sobre a construção desse espaço. “Tudo é imagem: moda é imagem, cinema é imagem, e música também é uma imagem. Então, eu construo tudo a partir de repetidas audições das músicas. Aí, eu penso o roteiro, onde começa, onde termina… E, claro, partimos dessa ideia do princípio que é Electra, trabalhar em cima do mito que Eurípedes escreveu. O interessante é que, para além disso, a Alice quis trazer coisas do Fausto, da Divina Comédia também”, completa Paulo Borges.

“Eu percebi que Electra é estranhamente atual por uma série de motivos”, explica Alice. “É importante olhar para esse personagem no prisma atual, no zeitgeist do momento social, tanto coletivo quanto individual. O que é a morte da mãe? O que é vingança? O que é ser mulher e jovem? O que é perder as suas características? O que é perder tudo? São todas questões abertas para as quais o disco traz algumas possibilidades de resposta e que o show amplia em sentido”.

A fantasia

O figurino de Electra cumpre papel fundamental na trama desenvolvida em cena. Não à toa, é o veterano Alexandre Herchcovitch (da etiqueta À La Garçonne) que assina as roupas que Alice veste durante a performance. O que começa com uma capa vermelha vai se desmontando no decorrer da peça até chegar em um simples vestido preto com bordados pontuais. Em outro momento, surge uma moderna jaqueta corta-vento quase fluorescente com o nome “Electra” grafado em grego nas costas. Como se ela, enquanto lutadora, tivesse acabado de entrar no ringue. “Moda para mim é expressão: moda e música andam de mãos dadas. Acho que a gente não se expressa sonoramente sem ter uma cama estética por trás e isso tem muito a ver com roupas, com quebra de paradigmas, com quebra de silhueta, de gênero, de tudo. A moda é fundamental para o meu trabalho”, reforça Alice.

O que é a morte da mãe? O que é vingança? O que é ser mulher e jovem? O que é perder as suas características? O que é perder tudo? São todas questões abertas para as quais o disco traz algumas possibilidades de resposta e que o show amplia em sentido – Alice Caymmi

O impacto

A cena derradeira de Electra toma forma na cantora dedicando-se ao clássico “Andança” (Danilo Caymmi, Edmundo Souto e Paulinho Tapajós) acapella enquanto entrega uma corda ao público e os puxa até o exterior do CCSP até sermos ainda mais surpreendidos por uma exposição com as imagens feitas em alusão ao disco e ao mito grego. Alice está de cabelos raspados, a segurar o punhal de sua personagem, em fotos belas que fecham de forma singular um espetáculo que atordoa.

É pouco provável que alguém tenha saído incólume das duas sessões iniciais de Electra. É espetáculo preciso, em que a harmonia do trabalho de diferentes pessoas – Alice, Paulo, Zé, Alexandre, Itamar, entre outros – resulta em uma experiência catártica. A voz ecoa e marca um novo espaço para Alice. A partir de Electra, ela existe para além de seu sobrenome; se esse sobrenome possui uma bela história, com essa investida, Alice aponta para o avante, o novo, o futuro e, evidentemente, prova que é também uma artista gigantesca a quem temos o privilégio, aqui e agora, de assistir inteira e entregue.

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ARTISTA: Alice Caymmi
MARCADORES: Entrevista

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