Forçando o verão

Céu chega a seu quinto disco e fala com o Monkeybuzz sobre o processo de “Tropix” até aqui: o filho, as polêmicas e, sempre, a música

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Céu já se tornou artista de primeira grandeza da música brasileira. Por isso, foi uma surpresa quando seu quinto disco, APKÁ! (2019), surgiu nas plataformas de streaming em um lançamento misterioso. Sucessor de Tropix (2016) – trabalho em que as noites tropicais tomavam conta de uma Céu interessada em sons mais eletrônicos –, APKÁ! traz novamente os mesmos parceiros musicais: Hervé Salters, da banda General Elektriks, enquanto co-produtor e tecladista, Lucas Martins como baixista e Pupillo na bateria, programações e co-produção.

O novo disco apresenta a cantora e compositora ainda em modo noturno, mas a nova faceta apresentada é a da soturnez constante em paralelo aos acontecimentos macabros que tomam conta do país. Entre dualidades e uma criatividade potencializada pelo parto de seu segundo filho, a artista escreveu grande parte do disco, assumindo a postura exclusiva de intérprete apenas em duas faixas: uma assinada por Caetano Veloso, “Pardo”, e outra por Dinho, do Boogarins, “Make Sure Your Head is Above”. Em conversa com o Monkeybuzz, ela falou sobre a maternidade e o título do álbum, bem como contou sua perspectiva sobre questões espinhosas em que se viu engendrada, como as acusações de apropriação cultural nas redes sociais. 

Esse novo disco tem muito da maternidade e de seu filho caçula Antonino. Como isso tudo se relaciona para o nascimento desse disco?

Bom, eu acho que o momento em que eu fiquei parada – após o show do “Catch a Fire”, em Salvador, que foi meu último show já grávida – houve essa internalização, vamos dizer assim, em que eu fiquei mais quietinha, esperando ele. Depois, eu passei por esse parto que eu acredito ter sido um parto transformador pra mim. Eu acho que toda a mulher que passa por um parto natural – sem intervenção cirúrgica e sem médicos querendo dar mil coisas pra você parir – é uma transformação profunda e altamente inspiradora. E eu não sabia que, a partir desse momento, eu ia começar a entrar nessa fase de criação e de ideias, então acho que tem uma certa relação. E considero ainda muito importante ser falado o quanto o Brasil prioriza o parto controlado, que tira muito da potência das mulheres. Acho que o que eu passei foi um exemplo justamente disso: de uma tomada de consciência do meu corpo e de minha própria existência. Isso fez com que eu escrevesse a primeira canção do disco, “Ocitocina (Charged)”, e, a partir daí, muitas coisas foram acontecendo que nem tem total a ver com o parto ou com o meu neném, mas que tem a ver com esse momento de puerpério. Fala-se que a mulher fica péssima nesse momento, deprimida e tal; tem isso sim, mas acho que também precisa se falar da potência com a qual a mulher fica. Tem um lugar muito de fragilizar a mulher, por que tiram da gente coisas ancestrais por causa da indústria, do controle médico, dos honorários dos hospitais, enfim, um monte de coisas para se falar sobre esse tema. 

O título do disco veio também da maternidade, já que é uma palavra que seu filho fala, em quais contextos ele usa a expressão “APKÁ!”?

É, ele fala “apká” quando está muito feliz, tanto que foi a palavra que eu mais ouvi. Isso me deu muita alegria, pois quando ele falava era alegria total. Isso acabou virando uma brincadeira do meu filho e da minha filha, então os dois ficam repetindo e morrem de rir. Por isso que eu acabei batizando o disco com esse nome.

É um disco de contrastes: fala desse amor, mas também desse ódio, fala de realidade versus inviabilização, fala de inteligência artificial e de como estamos perdendo a noção do que é real. – Céu

E esse é um disco mais alegre, acho que ele tem muitas canções que falam de amor e até mesmo de vivenciar as coisas por uma ótica positiva, apesar de tudo.

Eu acho que primordialmente é um disco de contrastes, sobre tudo o que a gente está passando. Eu acho que ele fala sobre presenciar o momento. Claro que isso, para mim, foi banhado de muito amor, mas também tem o contraste de muita estranheza, desse momento nefasto que a gente está vivendo mundialmente. É um disco de contrastes: fala desse amor, mas também desse ódio, fala de realidade versus inviabilização, fala de inteligência artificial e de como estamos perdendo a noção do que é real. Tanto é que a primeira e a última músicas falam disso: de como estamos vivendo como “robozinhos”. O disco tem uma pegada de superfuturismo, porém com coisas super antigas junto. A própria música de abertura, “Off (Sad Siri)” traz referência de música dos anos 1950, como um coro de vozes, só que eu estou na verdade falando da voz da robô Siri, pois ela está triste que o cara pagou pra ela ficar off. No final, eu acho que o APKÁ! é esse momento de polarização, de contraste, de direita e esquerda, é sobre isso.

Uma das coisas que o Alexandre Matias fala no texto de lançamento é que o disco não traz as respostas, ele apenas possibilita provocações.

É isso mesmo, eu não tenho a resposta de nada, eu não sei de nada. A coisa que eu mais sei nesse momento da minha vida é que eu não sei de nada [risos] e que eu estou buscando e tentando.

FOTO: Fábio Audi

Falando nesse sentido de aprendizado, esse ano, um post seu no Instagram, em que você aparecia de tranças afro gerou uma ampla discussão sobre apropriação cultural. Como essa situação impactou em você? Essa tensão de alguma forma fez você mudar seu olhar sobre esses signos culturais com os quais você se relaciona?

Sim, foi super forte e foi triste também, de certa maneira. É uma situação onde a gente percebe a grandiosidade de um assunto que está eternamente em conflito, de uma ferida que nunca é estancada. Em um primeiro momento, é claro que a gente só se sente atacada: eu estava em um evento pela causa da demarcação indígena, em que fui por minha vontade, não estava em nenhum show, trabalho, com nenhum cachê. Nesse dia, eu estava com uma trança, que eu ganhei de presente. Eu fiz a trança em casa, com uma trançadeira negra. No início, eu não entendi os ataques, mas o que aconteceu é que a minha figura virou espaço para uma grande discussão sobre a questão da trança, que é uma coisa ancestral, não só de origem africana. Eu entendo que esse foi um momento muito interessante sobre questões que ainda não estão prontas e onde eu, dentro da minha figura, tenho que escutar. São muitas questões que ficaram na minha cabeça e que eu quis conversar sobre isso, só que na internet não existe lei, não existe respeito. Então, muitas vezes, fica uma confusão estacionada em um lugar muito triste. Isso entristece, porque muitas vezes é apenas um ataque sem reflexão. Nesse momento, as pessoas estão querendo rever essas questões e esses signos, e eu acho que faz muito sentido para que a gente comece a pontuar coisas importantes que estão aí. É muito complicada no Brasil a mistura e isso deixa dúvidas: a gente ficar mirando em um modelo norte-americano de colonização e de devastação negra e indígena é complicado, pois é algo totalmente diferente do nosso. Tem uma falta de lógica em várias coisas na internet, mas é por que a dor é muito grande, e quando a dor é muito grande e existe há muitos anos, o que nos resta é sentar e escutar. É isso que tem que ser feito. É um momento de a gente parar e escutar mesmo esse enorme grito que está sendo dado. Lembrando que eu sei exatamente quem eu sou e o meu papel; e o que eu quero é ser só uma aliada da parada, quero estar junto enaltecendo sempre do lugar a que pertenço.

Falemos da canção “Pardo”. A nomenclatura pardo é pano de muitas discussões entre teóricos, pesquisadores e militantes. Você não considera um passo arriscado gravar uma canção que tem justamente esse nome, mesmo sendo ela do Caetano Veloso, depois de todas as tensões que foram suscitadas?

Na verdade, não. Eu pedi uma música para o Caetano e fiquei muito feliz que ele topou fazer e é isso. Eu acho que a música é belíssima, que fala de um relacionamento homoafetivo masculino, ou seja, não me pertence mesmo, eu estou sendo apenas uma voz. Eu acho muito interessante e livre a gente poder refletir sobre o ser humano, em geral. Sobre ser, sobre não ser, sobre o outro, sobre mil questões. E acima de tudo, há Caetano: tudo que ele fez pela música brasileira, pela pessoa que ele é. A discussão existe, porém existem tantas discussões que se eu parar de cantar frente a todas as coisas que estão em progresso, aí eu não ando mais e eu paro com a minha honestidade de fazer. São discussões complexas, só que a minha função como artista é ser um filtro, um canal para levar o negócio e ser debatido. Eu não estou aqui para ficar agradando, exatamente. Eu só sou o que eu sou e gostar ou não gostar, fica a cargo de cada um. Agora, pode ter certeza que o que eu faço é sem querer ferir ninguém; eu faço tudo com amor, carinho e honestidade.

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ARTISTA: Céu

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