Kokoroko: não é sobre jazz, é sobre África

Sheila Maurice-Grey, trompetista do grupo londrino, fala das histórias, dos sons e das intenções que circundam o excelente disco “Could We Be More”

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Fotos: Vicky Grout

Juntos desde 2015, o grupo Kokoroko ganhou destaque mundial em 2018, quando o selo Brownsville, do francês Gilles Peterson, soltou a coletânea We Out Here, com o propósito de apresentar a emergente cena do jazz do Reino Unido. Em nove faixas, o disco apontou artistas que viraram nomes de repercussão internacional nos anos seguintes, como a saxofonista Nubya Garcia, o quinteto Ezra Collective e o já consagrado multi-instrumentista Shabaka Hutchings. Quando We Out Here foi lançado, o Kokoroko já tinha alguma projeção por conta das apresentações ao vivo e de uma participação no Sofar Sounds de 2016, na qual o grupo ainda se chamava Kokoroko Afrobeat Collective. Mas, a única música autoral dessa apresentação não tem tanto a ver com a sonoridade do Kokoroko hoje, até porque, com três anos de banda, é difícil entender o que essa banda é — especialmente com oito pessoas de interesses e referências diversas. Existe um talento ímpar em lapidar uma sonoridade até que habilidades divergentes se tornem complementares; e é a isso que a trompetista Sheila Maurice-Grey se dedica há anos. Em entrevista ao Monkeybuzz, Sheila conta mais sobre o disco de estreia do grupo nada estreante, Could We Be More (2022).

Lá em 2018, a participação de Kokoroko fechava a coletânea We Out Here com a primeira gravação de estúdio do grupo: “Abusey Junction”. Rapidamente, a música virou o hit do disco e ganhou versões no YouTube em looping de 24 horas. “Abusey Junction”, hoje com impressionantes 52 milhões de visuzalições no YouTube, extrapolou o público do jazz e isso em si já é um grande trunfo nesse nicho. Um ano depois do sucesso da coletânea, We Out Here virou um festival de música e Kokoroko lançou seu primeiro EP, que também terminava com “Abusey Junction”, como quem tenta repetir uma cena improvável e perfeita. Deu certo. Com quatro faixas, o EP homônimo KOKOROKO (2019) reafirmou a sonoridade dramática e meditativa do grupo que reverencia afrobeat e highlife, ambos gêneros musicais do oeste da África sedimentados pelo revolucionário Fela Kuti.

Enquanto a profusão de instrumentos de sopro com guitarras e percussão — marcantes no afrobeat — aparece de cara no primeiro EP do grupo londrino, a pegada mais solar do highlife só ganharia plena potência no disco de estreia. No entanto, o grupo sempre foi muito incisivo ao dizer que não se trata de uma banda de jazz, mas um grupo de afrobeat e highlife. A música do oeste africano sempre foi uma referência expressa. Talvez por esse motivo, existiu por alguns anos uma conversa de que a apresentação ao vivo do Kokoroko era muito diferente do seu único EP: o show é mais swingado, mais groovado, mais dançante do que “Abusey Junction” aponta. É claro que “Adwa”, faixa de abertura do EP, já traz um ritmo mais acelerado pela dança entre piano e percussão, mas ainda assim era difícil imaginar só por essa gravação o quanto o show deles não era (e não é) um show de jazz que se vê sentado, conversando ao pé do ouvido.

“Esse álbum me ensinou muito. Existe uma arte em se doar para algo, e acho que a maior coisa que pensamos previamente foi que ouvissem nossas vozes. Isso foi especialmente difícil de alcançar, mas também tem muita individualidade no disco. E, ainda assim, tudo se arremata coletivamente e conta uma história”

“A música que nós tocamos não é somente jazz; é improvisação, mas eu não diria que nós somos um grupo de jazz”, afirma Sheila Maurice-Grey, “Primeiro porque nós nos juntamos para reverenciar e tocar músicas de afrobeat e highlife — e é esse o coração e alma do Kokoroko. Naturalmente, a maioria de nós já tocou jazz, então isso sempre vai ser uma característica presente na nossa música. Quando você ouve Fela Kuti, é sempre improvisação, inclusive no highlife. Eu sinto que o jazz influenciou tantos gêneros musicais, assim como blues e muitos outros estilos dessa época, especialmente a música negra. O jazz é diaspórico nas suas origens: ele vem de música de percussão. Eu acho que essa é uma grande conexão entre jazz e afrobeat. Até porque o afrobeat vem muito do funk, trata-se de um gênero muito influenciado por James Brown. Eu acho que essa é uma grande conexão de todos esses gêneros musicais”

.A insistência do grupo em pontuar que Kokoroko é uma banda de afrobeat/highlife, em vez de jazz vem justamente do ponto de partida do grupo. A ideia da banda surgiu em uma conversa de Sheila com o percussionista Onome Edgeworth um ano depois que eles se conheceram, através do trabalho de caridade da mãe de Onome. “Em 2015, nós fomos ao Quênia para fazer um trabalho de caridade e começamos a conversar sobre afrobeat e a falta de diversidade em Londres. Ou melhor: a falta de jovens negros, músicos e musicistas, fazendo música. Foi assim que a banda surgiu”, relembra Sheila. Assim, Kokoroko começou como uma reverência e uma resposta. Uma celebração da história, da música da África e uma reafirmação sobre como esse legado influencia a música hoje. Uma objeção contundente à exclusão das pessoas negras do meio musical e a forma como essas pessoas são tratadas quando estão no palco.

Em entrevista à revista Gigwise, Onome já chegou a comentar sobre esse incômodo que tanto ele quando Sheila sentiam sobre a cena musical londrina. “Eu sempre amei afrobeat e Sheila também. Mas eu odiava o jeito que o afrobeat era tocado em Londres, não era divertido e tinha um clima muito particular como ‘world music’. Eram sempre duas pessoas africanas no palco e elas eram as únicas pessoas africanas no lugar. A gente passou um bom tempo falando sobre isso e Sheila disse ok, então vamos fazer uma banda”.

A história do Kokoroko é assim: vem dos incômodos que se tornaram inquietações até emergirem numa teimosia, numa obstinação, numa banda. O propósito de Sheila e Onome é fazer afrobeat e highlife em um grupo de pessoas negras no palco e rodar o mundo para dizer que não é tão somente sobre jazz, é sobre África. “Kokoroko tem muitas traduções e depende de onde no mundo você está, mas algumas traduções eu acho particularmente interessantes”, conta Sheila. “Muita gente diz que ressoa o cacarejar de um galo na manhã, mas essa palavra em particular nós pegamos da comunidade nigeriana Urhobo e significa ‘seja forte’ ou, na minha tradução favorita, ‘difícil de quebrar’”.

Um ano depois do EP homônimo, Kokoroko foi da Alemanha ao Brasil algumas vezes. O grupo mudou de formação e rodou o mundo levando sonhos difíceis de quebrar, música groovada com metais marcantes e corrigindo jornalistas culturais porque não, na verdade, não é uma banda de jazz. Em 2020, planejavam um disco de estreia quando foram surpreendidos pela pandemia de Covid-19. No verão do mesmo ano, decidiram ir para um home studio na praia e gravar olhando para o mar. Tematicamente, esse timing é importante para entender a profundidade de faixas como “Something’s Going On”, que remonta o alerta incessante do nosso tempo (e especialmente trágico durante o auge da pandemia de Covid-19) de que algo está acontecendo, em um balanço entre tensão e lamento; e “Those Good Times”, que hoje poderia passar batida como uma canção de amor, mas remete — com implacável leveza — a todo um sentimento de perda enquanto humanidade.

“O que tocamos não é somente jazz; é improvisação, mas eu não diria que somos um grupo de jazz. Nos juntamos para reverenciar afrobeat e highlife — e é esse o coração e alma do Kokoroko. Naturalmente, a maioria de nós já tocou jazz, isso sempre vai ser uma característica presente. O jazz é diaspórico nas suas origens: ele vem de música de percussão. Acho que essa é uma grande conexão entre jazz e afrobeat”

“O processo de gravar Could We Be More foi um presente”, relembra Sheila. “Nós sentamos todos juntos, fizemos um brainstorming sobre o que nós queríamos desse álbum em termos de intenção e como nós queríamos que as pessoas percebessem esse disco. Foi realmente um grande momento para a gente. E eu acho que nós saímos disso nos sentindo muito inspirados e energizados para criar mais e escrever mais. Eu vou sempre lembrar desse momento na minha vida”.

Os oito membros da banda arrumaram suas malas, com sonhos grandes e a esperança de fazer músicas que sejam, assim como seus desejos, difíceis de quebrar. Foram para East Point, onde ficaram por quase um mês. Uma semana trabalhando, uma semana folga e, então, duas semanas inteiras gravando. “Esse álbum me ensinou muito”, conta Sheila. “Existe uma arte em se doar para algo e eu acho que a maior coisa que nós pensamos previamente — e concordamos que era um ponto importante para nós — era que você pudesse ouvir nossas vozes no disco. Eu acho que isso foi especialmente difícil de alcançar, mas também tem muita individualidade nesse disco. E, ainda assim, tudo se arremata coletivamente e conta uma história”.

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ARTISTA: KOKOROKO