Não mexe comigo, que eu não ando só

Ao lançar o single “Corpo sem Juízo”, Jup do Bairro convida seu público ao árduo questionamento: o que vem depois da desconstrução?

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Fotos: John Halles

Jup do Bairro tem 25 anos e, nos últimos 10, atravessou o seu processo de compreensão da pessoa que sempre quis ser e da profissional que decidiu se tornar. O período foi de desconstrução de si, para a abertura de um espaço possível à edificação do novo: a garota transexual de Valo Velho, região do Capão Redondo, em São Paulo, transformou-se – numa trajetória autodidata – artista performer, rapper, compositora, apresentadora e a grande parceira musical de Linn da Quebrada. “Hoje sou outra pessoa”, conclui.

Agora, entende que é a hora de compartilhar esse caminho trilhado na última década com o público. E, mesmo que a nova empreitada seja por meio de uma carreira solo, ela decidiu que não dará os próximos passos completamente sozinha. Convoca todos para construir com ela o que sucede a desconstrução do indivíduo. “Pergunto o que vem depois, provocando a mim e aos outros”, conta. “O objetivo não é trazer finalidades, nem levantar exclamações, mas, sim, novas interrogações”, continua.

O primeiro questionamento já pode ser ouvido. Lançado na última sexta-feira (21.6), “Corpo Sem Juízo” está disponível nas plataformas de streaming e no Youtube. A composição é de 10 anos atrás – quando Jup começou a escrever com mais intensidade –, mas a faixa oficial é apresentada agora, claro, porque conta com a colaboração de outras mãos (e de outras vozes). “Corpo Sem Juízo” tem produção musical de BADSISTA – com quem se apresenta também através do projeto Bad do Bairro – e os vocais da escritora mineira Conceição Evaristo e da então estudante carioca transexual não-binária Matheusa Passareli, morta em abril do ano passado.

A ideia para os próximos meses é seguir com essas perguntas em forma de canção com o povo e para o povo. E, para isso, Jup anuncia uma campanha de financiamento coletivo através da plataforma Kickante. “Seria impossível produzir o projeto sozinha”, avisa. Na entrevista abaixo, fica o convite para conhecer ainda mais a artista e a sua produção que não anda só:

Como a Jup do Bairro nasceu?

Comecei escrevendo sem pretensão, mas querendo materializar o que eu estava sentindo. Era uma forma de terapia, onde eu precisava me ler e me escutar. Na adolescência, comecei a participar de encontros anarquistas e me apresentaram às fanzines. Eu produzia colagens para colocar ao lado dos meus textos e entregava esse material nas ruas. Como eu era uma criança tímida e introspectiva, as pessoas pegavam aquilo achando que era panfleto da igreja, mas se assustavam quando viam pênis e vaginas ao lado de textos sobre sexualidade. Eu estava assinando o meu atestado de artista e começando a mergulhar nas várias formas de me comunicar, como a atuação, a performance, a música, o DJ set.

Quem mais te inspirou de lá pra cá?

A minha mãe e as pessoas da minha quebrada, principalmente. Hoje, também os artistas da minha equipe, como o Thiago Felix e o Felipe Damasco. Os saraus de quebrada sempre me moveram, como o Sarau do Capão, que é formado por minas poetas da Zona Sul. Conheci artistas fodidos como o Mulambo, Brrioni, Thalia Abdon e o Harlley, do Quebrada Queer. Todos eles me fortaleceram muito.

“Corpo sem Juízo” foi escrito há dez anos e lançado agora. Quais os principais motivos?

Quando escrevi “Corpo Sem Juízo” estava em um momento de questionar o meu corpo, com suas potências, fragilidades e insistências. Na época, cheguei a gravar a faixa em um computador de tubo, mas com o tempo fui abrindo mão dela e de outras composições que fiz. Eu sentia que tinha outras urgências. Afinal, hoje sou uma outra pessoa. Acredito que ela faz muito mais sentido agora.

Por que as escolhas de Conceição Evaristo e Matheusa Passareli?

A Conceição é a autora que eu mais leio. Me aproximei de Tainá Evaristo, sua sobrinha, e levantei a possibilidade de construirmos algo em conjunto. Ela ficou muito feliz e me ajudou com a ponte. Já a Matheusa, tínhamos uma grande proximidade. Falávamos muito sobre as coincidências de nossas escritas, como no fato dela ter um texto chamado “Corpo Estranho” e eu “Corpo Sem Juízo”. O desaparecimento de Matheusa e o anúncio de que sua trajetória foi interrompida fizeram com que eu e nossas amigas começássemos a questionar ainda mais profundamente as nossas existências. Falei com Gabe, irmã de Matheusa, e pedi a autorização dela e da mãe para o uso do áudio. Lançar essa música, com falas dela, é para alertar quem precisa ser alertado e confortar quem precisa ser confortado. Quando ouvi Conceição e Matheusa juntas, tudo fez sentido. E fez sentido ter esperado dez anos para lançar.

E como é ser uma artista LGBTQI+ justamente em um dos países mais nocivos no mundo a essa população?

É sempre importante lembrar que o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais, enquanto também é que mais consome pornografia desses corpos no mundo. Fora isso, quais são os corpos que realmente podem usufruir de espaços quando falamos de visibilidade LGBT+? Já está insustentável, dentro da lógica do mercado, continuar a marginalizar e excluir essa população. Mas, quando falamos de visibilidade, esses espaços ainda têm restrição de cor, classe, padrão, proposta e lógica corporal. Uma parcela parece mais degustável do que a outra. Quem pode representar uma comunidade tão diversa? A representatividade é pessoal e intransferível. O que podemos fazer com o nosso trabalho é ser uma efetivação em espaços para que corpos que se reconheçam minimamente com os nossos se sintam também pertencentes.

“A palavra tem poder de transformar e reinventar coisas. Através da palavra que inventamos um lugar, é insustentável viver sem um espaço.”

Sobre a sua relação com a Linn da Quebrada, o que ela representa para você e o que você imagina representar para ela?

A minha relação com a Linn da Quebrada e com a Lina Pereira são muito parecidas. Nós temos uma parceria profunda e sincera. Nós somos as maiores provocadores uma da outra, inclusive com a liberdade de sermos provocativamente cruéis. Construímos juntas algo que só nós duas conseguiríamos construir. Passamos por muitos momentos, bons e ruins, de miséria e de fartura. E, seguimos juntas acreditando em nossas verdades inventadas. Sermos parecidas e diferentes ao mesmo tempo nos instigou à criação, inclusive à criação de nós mesmas.

Vocês duas têm uma relação extremamente forte com a palavra. De onde vem isso?

A palavra tem poder de transformar e reinventar coisas. Foi através da palavra que consegui me expor para mim e para os outros, seja por validação pessoal, por uma vontade de ingressão ou para criar um espaço em que eu pudesse caber, existindo em minha individualidade. Através da palavra que inventamos um lugar, porque é insustentável viver sem um espaço.

Os últimos dez anos foram marcados por essa formação pessoal. O que você espera dos próximos dez?

Em dez anos eu completo 35 e chego à expectativa de vida média de uma pessoa trans no Brasil. Eu quero continuar viva.

Participe do financiamento coletivo em:

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ARTISTA: Jup do Bairro
MARCADORES: Entrevista