Real Estate e a despretensão como identidade pop

Do Zoom a Nashville, do indie ao country: retorno às experiências intuitivas marca o sexto álbum da banda, “Daniel”

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Fotos: Sinna Nasseri

A espontaneidade como retorno às origens é um dos trunfos do Real Estate em seu sexto e mais recente álbum, Daniel, lançado em fevereiro desse ano. “Muito da composição veio do desprendimento, de não termos que provar mais nada”, inicia Alex Bleeker, baixista da banda. No começo de 2020, o Real Estate lançou seu quinto álbum, The Main Thing, sem saber que o mundo logo seria envolto pela pandemia da COVID-19, resultando no cancelamento de toda a turnê e planos de promoção. Esse revés os deu um clique criativo de voltar ao básico, de retomar o simples prazer de estarem juntos na elaboração de um álbum. “Voltar da COVID, essa longa hibernação, não poder tocar ao vivo… queríamos voltar a fazer música partindo do intuitivo, uma coisa mais orgânica, com uma boa fluidez”, destaca Alex.

Só tem vontade de voltar quem vai para longe, e a Real Estate estava caminhando nos limites do indie rock maximalista da última década, até chegar nas aspirações jazzísticas que deram forma ao denso The Main Thing. “Em outros momentos queríamos atingir tal proposta, a partir de tal dinâmica… Agora, queremos curtir nós mesmos um pouco”, comenta o músico. No percurso, a banda se consolidou como uma das mais sonoramente emblemáticas dos anos 2010, especialmente pelas guitarras deslizantes da sequência de álbuns Days (2011) e Atlas (2014). Apesar de marcante, a banda procurou evitar que o período fosse a ‘fase definitiva’. “Acho que muitas bandas têm um ou dois álbuns que os fãs consideram como definitivos. Temos plena consciência de que tanto Days quanto Atlas ocupam esse espaço para os fãs, mas estamos sempre seguindo, e acho que você não pode se prender muito ao passado”.

Entre o conforto da intuição e a fuga da repetição, as composições de Daniel, majoritariamente escritas pelo vocalista Martin Courtney, apontam para uma proposta mais direta, com uma clareza e honestidade sobre a vida chegando aos 40, as impressões pessoais advindas da paternidade e a busca por um caminho nesse novo contexto. “Acho que um dos objetivos do Martin quando ele estava escrevendo as letras, foi cortar um pouco da poesia, um pouco da opacidade, escrever de forma muito clara e direta sobre coisas que ele estava vivenciando no momento”, aborda Alex. A inquietude da banda em se reconectar a partir da simplicidade os colocou em um direcionamento de explorar uma veia mais pop, o que os levou ao produtor Daniel Tashain — conhecido por seu trabalho em Golden Hour (2018), aclamado álbum de Kacey Musgraves, vencedor do Grammy de álbum do ano. “Nesse álbum, mesmo antes de todas as músicas estarem escritas, rolou uma discussão real sobre abraçar essa parte pop do nosso som e torná-lo mais claro, limpo e direto. Daí decidimos trabalhar com o Daniel Tashian para alcançar isso”.

“Acho que um dos objetivos do Martin, quando ele estava escrevendo as letras, foi cortar um pouco da poesia, um pouco da opacidade, escrever de forma muito clara e direta sobre coisas que ele vivenciava no momento”

De reuniões no Zoom a encontros em Nashville, a banda passou nove dias no lendário RCA Studio A, o estúdio fundado em 1964 por (entre outros) Chet Atkins. O que era para ser intuitivamente pop ganhou traços de country não sendo exatamente nem uma coisa nem outra. “Não é um álbum de country, mas estávamos em Nashville, então esse som acabou se infiltrando. Acabamos acenando para isso com o pedal steel e tudo mais”, pontua Bleeker.

“De certa forma, você sempre está respondendo ao álbum anterior. Eu vejo o ‘Daniel’ como o oposto do último álbum, em que a gente queria mostrar todo tipo de música que ouvimos. Nesse, foi só: ‘como podemos ser nós mesmos da melhor maneira?’”

O jangle pop e o surf rock característicos do som da banda tomam o lado contrário ao blasé e a melancolia dos últimos álbuns, partindo para uma abordagem mais solar, na qual a busca pelo essencial é o tom. “Acho que, de certa forma, você sempre está respondendo ao álbum anterior. Eu vejo o ‘Daniel’ como o oposto do último álbum. Acho que a gente queria mostrar todo tipo de música que ouvimos, tudo num álbum só. Nesse, foi só: ‘como podemos ser nós mesmos da melhor maneira?’”, conta o baixista. Procurando pelo cerne de seu som, a banda de Nova Jersey traz em Daniel acenos melódicos a algumas de suas influências. “Acho, com certeza, que alguns álbuns do R.E.M. foram uma influência essencial pra gente”, exemplifica. Em músicas como “Flowers” e “Say No More”, o indie country de álbuns como Green (1988) e Automatic For The People (1992) é revisitado em timbres como ponto de partida lúdico.

O autoconhecimento proposto em Daniel foi um movimento natural pelo desenrolar do atual momento da banda. Ainda em 2020, houve mudanças na formação, com a saída de Jackson Pollis para a entrada da baterista Sammi Niss. “Estamos num momento ótimo na banda, tanto no âmbito criativo quanto pessoal. A formação tá bem sólida agora, a gente curte tocar junto, e queríamos passar isso no disco”, comenta Alex. Antes disso, a banda, embora longe da inatividade, estava tranquila o bastante para dar vazão às carreiras solo de Alex Bleeker e Martin Courtney. Em 2021, Alex lançou Heaven On The Faultline, enquanto, no ano seguinte, Martin veio com Magic Sign. “Não é coincidência que esses dois tenham saído durante o lockdown. Todo mundo estava mais sozinho, foi um ótimo momento para juntar ideias e lançá-las individualmente. Depois disso, ficou mais fácil nos reunir e colaborar”, complementa Alex.

“Essa conexão familiar é tão importante para a espécie de alquimia mágica do Real Estate que quisemos trazer essa nostalgia coletiva de alguma forma”

A identidade visual do álbum também traz o familiar em destaque. A capa, meio retrô, de um gancho de orelhão visto de baixo, foi clicada por Sinna Nasseri, fotógrafo do The New York Times, que estudou com os membros da banda durante a adolescência. “Ele é um fotógrafo incrível, da mesma parte de Nova Jersey em que crescemos. Estudamos juntos e tudo mais. Essa conexão familiar é tão importante para a espécie de alquimia mágica do Real Estate que quisemos trazer essa nostalgia coletiva de alguma forma”. Da mesma forma, a proposta da banda para o clipe de “Flowers” foi de revisitar algo imageticamente nostálgico. Para isso, eles chamaram o renomado diretor Magnus Carlsson, responsável pelo clássico clipe de “Paranoid Android”, para a animação do clipe. “Sempre fomos pirados por aquele vídeo e estávamos procurando alguém que também pudesse se inspirar no trabalho dele para criar algo com uma estética semelhante. Eventualmente, pensamos, por que não tentar com ele mesmo, talvez role? Ele adorou a música e fez o vídeo bem rápido até. Apenas alguns e-mails trocados e ele topou. Incrível, né?”, recorda.

Depois de mais 15 anos de carreira, Real Estate traz em Daniel um passo em direção à renovação, fazendo da aparente zona de conforto um exercício de desenvolvimento. A pessoalidade no nome do álbum pode até indicar uma homenagem ao produtor Daniel Tashian — “excêntrico de um jeito legal, super conectado a criatividade livre”, nas palavras de Alex. Ou ainda, poderia ser uma referência ao minimalismo dos Replacements em Tim (1985). Mas, no fim, acaba soando como simplesmente o nome de um amigo bom para jogar conversa fora e tomar uma cerveja.

De um jeito honesto e inventivo, o projeto traz frescor à discografia do Real Estate, sem firulas ou códigos. É um retorno que não é um retorno, um olhar para dentro que ressoa para fora – e uma celebração da simplicidade que carrega em si uma sabedoria de quem sabe o que é. “Eu gosto de usar a palavra ‘destilado’, porque parece uma destilação, uma versão clara e cristalizada do que já fazemos”.

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ARTISTA: Real Estate

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