Reflexos e reflexões com Luiza Lian

Em “7 Estrelas | quem arrancou o céu?”, a artista segue com o produtor Charles Tixier, uma parceria de mais de uma década, e nos convida a imergir em sua nova paisagem sonora – na qual o experimentalismo, a poesia e os reflexos de nós mesmos se encontram

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Fotos: Larissa Zaidan

Para quem já muito voou em volta de Andrômeda com a Luiza Lian, não deverá ter medo de lançar-se no mergulho para qual a artista nos convida em seu quarto disco de estúdio, 7 Estrelas | quem arrancou o céu?. A obra inédita, lançada pela Selo Risco nesta sexta-feira, 28, surge cinco anos após o resplandecente Azul Moderno, seu antecessor.

Sob o título encurtado #7qaoc, a produção explora lados sombrios e também luminosos de nós como indivíduos, enfrentando angústias de nossa natureza e questões contemporâneas, como os frenéticos espaços virtuais nos quais habitamos. Luiza também passeia com seu leque de composições e destaca temas políticos — para além dos místicos — que ecoam através das texturas e camadas sonoras meticulosamente criadas pelo seu parceiro musical há mais de uma década, Charles Tixier.

A sintonia criativa da dupla se materializa neste trabalho como uma celebração, em que praticamente nenhum outro elemento externo é introduzido, exceto a potente participação de Céu, na faixa “Tecnicolor”. Ao longo das demais canções, a combinação vocal de Luiza com as experimentações, distorções e manipulações sonoras do produtor se aprofunda de forma autêntica, posicionando-nos diante de seus novos horizontes

Aqui, Luiza Lian narra o processo de autodescoberta que a produção do disco lhe permitiu, além de falar sobre a dualidade presente no álbum, a vontade de se explorar como artista e a importância de priorizar a autenticidade.

Conta um pouco sobre a escolha do título?

Sinto que o nome do disco em si é uma poesia. O significado dele não é uma coisa fechada, mas ele representa muito esse lugar da dubiedade, sabe? Tem o lado muito luminoso, mas tem o lado muito sombrio também. Apesar do nome ser ao contrário, né? [risos]. 7 Estrelas é o lado B e Quem Arrancou o Céu? é o lado A. Quando eu fiz “7 Estrelas”, entendi que ela tinha um nome muito forte e eu pensei: “Todos os meus discos são ‘Luiza Lian, Oyá Tempo, Azul Moderno, 7 Estrelas?…”, enfim, além de sentir que esse disco é um passo além das coisas que eu estava fazendo e não querer repetir a fórmula do nome, eu realmente achava que esse nome sozinho não dizia o que o disco é. Por isso, a gente resolveu fazer um nome duplo.

Como você mesma disse, dá para sentir que a primeira metade do disco constrói esse clima mais introspectivo, sombrio, enquanto a segunda parte parece trazer renovação, luz… Essa progressão foi algo proposital no desenvolvimento do disco?

Quando a gente tava fazendo o disco, já existia uma vontade muito grande de não ficar preso em uma questão espiritual e mais luminosa, porque havia outros assuntos na minha cabeça naquele momento, outras discussões, com o Charles, inclusive. Então essa vontade de falar sobre outras coisas já era muito forte.

Mas não sei, eu acho que o disco é uma caminhada… Uma caminhada que você mergulha nesses espelhos. A imagem que eu tinha muito enquanto construía o disco era dessa pessoa que se perdia porque estava mergulhada no espelho, sabe? Como se ela tivesse entrado em uma espécie de inferno porque ela mergulhou lá, viveu um monte de coisa ali dentro, uma peia, uma ilusão, uma loucura… E depois ela sai de lá. Então, é menos desse lugar polarizado, ou um pouco no lugar do espelho, um pouco do lugar polarizado, e mais sobre você caminhar para um lugar melhor.

“Já existia uma vontade grande de não me prender em uma questão espiritual e mais luminosa. Havia outros assuntos na minha cabeça, outras discussões”

A estética visual sempre foi uma parte importante da sua presença artística. Quais foram suas inspirações visuais para a concepção deste trabalho?

É, foi uma loucura [risos]. A gente entrou em 300 mil processos visuais diferentes, né, porque eu estou pensando nele desde 2020 e eu tenho uma relação com o meu trabalho de que a visualidade e a música andam muito juntas, então, ele tem planos grandiosos, de ser para além de uma visualidade que esteja em função da música, mas a visualidade em si também contar uma história. Teve muita pesquisa de uma estética mais gamer, porque eu achava que tinha muito a ver. A gente achava que dentro dessa ideia, do mergulho dos espelhos tecnológicos, trazer uma coisa que fosse tipo um “jogo”. A verdadeira vontade é fazer um jogo mesmo, mas quem sabe o que pode acontecer, a gente já tem os 3D, então, já tem meio caminho andado [risos]. E aí também tinha uma ideia de trazer uma coisa que fosse mais mitológica, sabe? Pensando em Narciso, Minotauro, na mitologia grega, mas também em lugar da mitologia brasileira, “do que são os 7s?”.

O 7 é muito conhecido no misticismo geral, mas também é muito presente no misticismo brasileiro. Na Umbanda, Santo Daime, Candomblé, a coisa dos 7 Orixás, então, tem isso, que é inevitável, mas visualmente a gente tava pesquisando também o tarot. Minha vontade era fazer uma carta de tarot para a capa. No dia a gente fotografou duas, uma era inspirada na carta da Estrela, mas a ideia da estrela em desencanto, e a outra era mais voltada para o Narciso, mas no fim, a gente ficou com um pedaço dessa carta, um crop.

Então não sei, referência é uma coisa difícil de falar, tava até conversando com o Charles sobre o jeito que a gente pensa musicalmente, quando as pessoas perguntam, e a gente não trabalha exatamente com referências, né? É claro que isso não significa que você não tem um repertório. Acho que você tem que trabalhar desenvolvendo isso, mas na hora de fazer, principalmente música, é o momento de você silenciar isso, né? E fazer a história acontecer.

“Eu vejo esse disco como meu e do Charles”

A produção do disco é super rica em texturas e camadas sonoras, o que vem também do fruto da sua parceria com o Charles, que te acompanha há uma década. Como você acredita que essa relação, já madura e estabelecida, influenciou na criação desse disco, em particular?

É, com certeza, inclusive, esse disco eu vejo como meu e do Charles, né? Acho que a produção dele ganhou um lugar na naturalidade do disco. As composições são minhas, as melodias, a maioria é minha, mas tem uma intervenção criativa muito grande dele, em várias delas, e até algumas bem determinantes assim como em “Homenagem” e “Tecnicolor”. Mas, não sei, foi muito em um lugar também de falar: “Não, vamos fazer juntos”, sabe? E como se deu o processo na pandemia, né? Antes a gente até pensava em fazer uma coisa com mais gente, mas acabou só nós dois.

E, putz, o Charles é o maior parceiro musical que eu já tive, no sentido de que a gente se entende muito. A gente começou tocando jazz juntos e, mesmo no jazz, ele na bateria, e eu na voz, eu me sentia muito confortável para improvisar dialogando com ele, sabe? Isso era muito incrível e já é um feito, né? Um sinal. Então, daí no primeiro disco [Luiza Lian, 2015] ele entrou na minha banda e a partir de Oyá Tempo, que foi, na verdade, o tempo dele se desenvolver em MPC, porque eu já sabia que tinha uma afinidade muito forte. Não exatamente que a gente goste das mesmas coisas, mas nosso gosto musical é bem complementar. Isso foi se desenvolvendo até o momento que fizemos isso juntos. Ele é ateu, mas nossa relação é telepática.

Em algum momento, você se sentiu pressionada a se manter criativa?

Tem uma pressão muito grande, né, de você estar o tempo inteiro ali. Tenho dificuldade com isso, porque coloco muito pensamento nas coisas que faço, acho que para além de ser criativa, o sentido, o significado da coisa são muito importantes para mim e não dá tempo, sabe? De você ficar produzindo para as redes e fazendo coisas que vão estar dentro de uma relevância, mas que também estão dentro de um game muito específico, né? E fazer uma coisa que seja muito criativa, no meu caso. Acho que muita gente consegue, tem muita gente que é brilhante. Então, cara, eu acredito muito que quando penso em uma construção de carreira, eu penso em uma música que vá durar muito tempo, sabe? E que novos significados vão ser aplicados a ela, conforme as pessoas escutam nos seus tempos, nas suas gerações. E eu acho que é muito difícil você fazer uma música que tenha esse “lugar”, fazendo com tanta pressa e com tanta sede de estar no diálogo do momento, sabe? Acho que acima de tudo existe uma ansiedade de você estar falando sobre o assunto que todo mundo está falando, e isso, dentro do lugar, dessa praça virtual que a gente se comunica, que na verdade é um shopping, é muito complicado, porque essa praça também sendo movida pelo dinheiro, ela impõe os seus investimentos.

Quando eu lancei o meu primeiro disco, na minha cabeça, eu tinha que dar uma continuidade. E, de repente, eu lancei o Oyá Tempo, pensando que aquilo era outra coisa e com medo, naquela época eu fiquei com muito medo de estar lançando uma coisa nova, que tivesse outra linguagem, mas acho que ter feito isso naquele momento, entre o meu primeiro e segundo disco, foi uma coisa que me deu muita coragem para entender que essa artista que eu era, sabe? Eu vou caminhar para lugares diferentes, mas eles vão ser profundamente diferentes, vão ser mergulhos profundos em todos os lugares. Então, acho que meu público está preparado para isso. Quem mergulhar nele vai ter o que ouvir.

A partir disso, quais são os seus impulsos para continuar se reinventando como artista?

Eu sinto até mais do que uma vontade de me reinventar, uma vontade de mostrar muitas outras coisas. Tem várias escolas de canto que eu tenho vontade de explorar e eu acabei não fazendo, por motivos diversos, porque um disco é um conjunto específico de músicas. E eu procuro ser muito honesta com o meu trabalho, muito honesta com o que pulsa verdadeiramente dentro de mim, se eu tiver algo para dizer, isso está na frente do que eu acho que vai dar certo ou não. E eu tento colocar a arte, assim como na minha espiritualidade, ela tem que vir na frente de qualquer explicação. Acho que essa é a minha maior chance de conseguir me reinventar.

Aproveitando para falar um pouco do seu público, que se interessa muito pelos conceitos que você traz, existe alguma mensagem que você espera que as pessoas identifiquem nesse novo disco?

Tem um lugar de olhar um pouco para algumas questões contemporâneas de frente, sabe? Eu sinto que apesar de estar todo mundo, todos nós, né, indo, sem pensar muito na direção, como uma manada assim, fazendo tudo o que precisa ser feito, usando todas as redes sociais, acho que essas angústias acompanham todo mundo e acho que as pessoas vão enxergar isso nesse disco. Não que ele traga muitas respostas, mas as perguntas que ele faz são importantes.

“Vou caminhar para lugares diferentes, mas eles vão ser profundamente diferentes, vão ser mergulhos profundos em todos os lugares. Acho que meu público está preparado para isso e quem mergulhar vai ter o que ouvir”

Você explorou uma variedade de recursos vocais e manipulações sonoras nesse disco, o que parece ter sido uma jornada profunda de autodescoberta para você. Teve algum momento revelador durante a produção do disco em que você se sentiu mais conectada com a artista que você é?

Vários. Acho que esse é o disco que mais me sinto contemplada. Claro que tem que ser assim, né, porque é o mais recente [risos]. Mas sinto que a gente realmente conseguiu chegar ao lugar onde eu me sinto contemplada enquanto artista. Acho que tanto no sentido de conseguir experimentar, experimentar outras coisas enquanto compositora, então, o spoken-word, que é uma linha tênue entre a canção, o texto falado e o rap, mas não é rap, é outra coisa. E poder explorar minha voz no texto, acho que é uma coisa que é muito rica e que me ensina muito enquanto compositora. Você deixar o canto manifestar uma fala… Que é um pouco diferente de só cantar.

Também enquanto compositora, acho que eu sou uma pessoa que tem uma história com espiritualidade que deixa as coisas em um lugar que me faz compor e ter uma identidade. Eu lembro quando lançaram a música da Xênia, falaram: ‘Eu ouvi e sabia que era Luiza Lian’, e eu acho isso muito legal, mas ao mesmo tempo eu sempre fico preocupada em me desafiar para novos lugares, sabe? Para não ficar presa em um lugar comum que é meu, ao mesmo tempo que sinto que tem lugares onde essa identidade é presente e ela é verdadeira, e sincera. Mas tem lugares que eu consegui explorar outras coisas e pensar na composição de um jeito menos linear. Acho que minha música é um grande exemplo dessas duas coisas. Tem o meu canto, tem o Canto da Sereia, essa chamada, ao mesmo tempo em que tem pensamento, eu não fui só no que era natural para mim.

Então, eu falava para o Charles: ‘Queria que depois disso aqui, a gente tivesse uma quebra muito radical na música’ ou ‘Tenho essa outra poesia aqui, que eu não sei o que fazer com ela, mas eu queria que você fizesse um beat que quebrasse total para a gente conseguir colocar.

Nesse sentido, de me desafiar, foi muito massa, o processo com o Charles é foda, e acho que enquanto cantora, mesmo que minha voz esteja distorcida em grande parte do disco, eu me dediquei muito nessa voz, nua e crua. Foi um trabalho muito profundo que fiz com a Magali para chegar naquelas últimas músicas com muita precisão, muita delicadeza, que era minha maior preocupação. É um trabalho que sinto que evolui em vários sentidos.

Alguma técnica, efeito ou algo do disco que tenha sido especialmente desafiador e gratificante de desenvolver?

Nossa, deixa eu pensar. Acho que dá para usar de exemplo as duas primeiras músicas, a “Minha Música É” tem bastante essa coisa do efeito, que vai de um lugar para o outro, né?  A voz começa cristalina e daí a música se transforma completamente. Eu tinha gravado a segunda parte há muito tempo, gravei em uma outra base, que estava em outro tempo, em outro tom. E o Sales foi lá e transformou essa voz, e daí, quando a gente foi gravar as vozes do disco, tentamos achar o caminho para gravar essa parte de novo, mas não conseguimos e pensamos: ‘ok, vai ser a voz da demo, ela nunca mais vai se repetir’.

Já “Tecnicolor” é uma música que eu fiz no Garage Band, quando a gente estava fazendo turnê no México, voltando de avião, fiz as bases. Nada disso ficou, o Charles fez outra música [risos]. Mas pegou melodia e transformou completamente, deixou nesse lugar bem robótico. Quando a Céu foi gravar a música, para ela sim, deve ter sido um desafio muito grande, porque essa melodia tem aspectos que são muito robóticos já, sabe? Então essa coisa da voz, que vai de um lugar para o outro de um jeito meio estranho, a Céu foi muito mestre em fazer isso na hora. Fiquei ouvindo ela fazer e foi muito incrível, porque ela tem essas regiões da voz que se transformam. Então, acho que essas músicas tiveram transformações e desafios muito legais.

Falando de “Tecnicolor” e Céu, ela é o único feat do disco. Como se deu essa parceria?

Eu sabia que queria ela no meu disco. Eu queria ter uma participação e eu queria que fosse ela, porque eu acho que ela tem uma importância muito grande assim, né, em abrir caminhos para esse som que eu estou fazendo hoje em dia. É de uma outra geração, eu sempre tive uma admiração muito grande nela, tanto como cantora, compositora, o jazz… E eu a conheci em um show dela, que eu fui tietar, e depois convidaram a gente para cantar no WME e deu super certo. Gostei do jeito que a nossa voz combinou, acho que a partir dali a gente foi se conectando e teve uma conexão muito legal mesmo, de diálogo, amizade, de estética.

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ARTISTA: Luiza Lian