SINAPSE: desmembrar o passado

“I Inside the Old Year Dying”, a arte de William Kentridge e a erosão

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Fotos: Mariana Poppovic

Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (às quintas-feiras).

 

EXÍLIO

PJ Harvey, William Kentridge e a terra devastada

 

Enquanto me preparo para escrever um pouco mais a fundo sobre PJ Harvey e seu disco novo, gostaria de, na coluna de hoje, falar sobre uma sinapse que me ocorreu ao ver e ouvir esse trabalho:

I Inside the Old Year Dying é o décimo álbum de Polly Jean e chega após um período de crise da artista em relação à música. Isso porque seus dois álbuns antecessores, Let England Shake (2011) e The Hope Six Demolition Project (2016), vieram embalados por uma toada militar e resultam de uma longa incursão da artista nos horrores da herança colonial de nosso mundo contemporâneo. Após ver de perto a violência da guerra e registrar suas impressões em músicas, fotos e filmes, a artista se viu desmotivada a continuar a sua jornada artística.

No entanto, um caminho se abriu por meio da poesia. No ano passado, PJ Harvey escreveu Orlam, livro que versa sobre a jornada de Ira-Abel Rawles, uma menina de nove anos de idade que gradativamente abandona a inocência de sua infância. No texto, a autora usa o dialeto de Dorset, sua terra natal. O álbum que chega agora é feito destas poesias musicadas.

O clipe para a faixa-título, um stop motion dirigido pela dupla de artistas chilenos Cristóbal León & Joaquín Cociña, parece remanescente do imaginário de seus álbuns anteriores, em que crianças habitam um mundo cheio de detritos, cinzas e escuridão. Há, no entanto, uma busca autobiográfica da compositora que procura dentro de si as metáforas para o cenário onde cresceu.

A linguagem visual do clipe é muito parecida com a inventada pelo artista plástico sul-africano William Kentridge. Ele trabalha usando o carvão e, em suas animações, desenha um frame por cima do outro, o que dá à obra uma identidade muito distinta.

Um tema que perpassa toda a sua obra é a forma peculiar como ele representa sua terra natal, marcada pelo apartheid durante sua infância. De alguma maneira, essa técnica de sobrepor os desenhos, borrando o que estava lá anteriormente, mas sem apagar por completo o seu conteúdo, evoca não apenas a história dos países, mas também a memória das pessoas que lá viveram.

A série de filmes intitulada Drawings for Projection é situada na paisagem devastada ao sul de Joanesburgo, onde minas e fábricas abandonadas, depósitos de minas e barragens de lodo criaram um terreno de nostalgia e perda. Em uma nota introdutória para o filme Felix In Exile, parte desta série, Kentridge escreve: “Da mesma forma que há um ato humano de desmembrar o passado, há um processo natural no terreno através de erosão, crescimento, delapidação, que também busca apagar os acontecimentos. Na África do Sul, esse processo tem outras dimensões”.

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ARTISTA: PJ Harvey
MARCADORES: William Kentridge

Autor:

é músico e escreve sobre arte