SINAPSE: ecos glaciais

Lea Bertucci e a música experimental no antropoceno

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Fotos: Mariana Poppovic

Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (às quintas-feiras).

 

A MÚSICA EXPERIMENTAL NO ANTROPOCENO

Lea Bertucci e os ecos glaciais

 

Lea Bertucci é uma compositora de Nova Iorque cuja música tem ressonâncias com fenômenos biológicos. Além da prática com instrumentos de sopro, seu trabalho incorpora a improvisação e usos criativos da tecnologia de áudio normalmente utilizada em gravações de campo.

No seu lançamento Of Shadow and Substance, uma composição para contrabaixo, violoncelo, harpa, percussão e eletrônica, a artista explora o acúmulo de eventos ao longo de períodos glaciais como metáfora para mudanças sociais e ambientais, expressando como eventos do passado se propagam pelo futuro. Através de texturas nubladas, timbres pontiagudos e massas de som, a música de Bertucci resulta em uma massa de experiência difusa e ominosa.

Of Shadow and Substance deriva de outras pesquisas da artista que tem a refinaria The Philadelphia Energy Solutions como origem: construído em 1866, o espaço abriu e fechou várias vezes antes de pegar fogo e explodir em 2019; milhares de quilos de ácido fluorídrico liberados no ar durante a combustão continuam vazando para a cidade. Nesse sentido, o álbum é uma meditação sobre como a degradação industrial reflete a decadência social.

Há algumas edições da SINAPSE venho traçando os efeitos estéticos da mudança climática na música, o que resulta numa espécie de breve registro musical do antropoceno. Entre artistas que saturam seus instrumentos, transformando harmonia em barulho, e outros que fazem o contrário, interpretando os ruídos da natureza através de notas musicais, cito aqui três exemplos:

Chik white, da Nova Escócia, no Canadá, que costuma registrar tempestades. No álbum sea foam floods the road – Hurricane Lee recordings, registrou o furacão Lee, na Nova Escócia. Ao colocar o microfone dentro de uma chaminé na área externa de sua casa, acabou registrando harmônicos do vento, como se fosse uma flauta.

Quintron, que usa o Weather Warlock para compor seu trabalho. Trata-se de um sintetizador analógico conectado a sensores climáticos que, por sua vez, são montados em um poste e detectam temperatura, velocidade do vento, índice UV, pressão barométrica, inundação e umidade atmosférica. A função do Weather Warlock é interpretar estes dados e produzir uma ampla gama de tons e harmônicos baseados em um acorde de si bemol.

Tim Hecker, no álbum No Highs, explora uma insatisfação com o estado atual da música ambiente, que, num mundo pós-pandemia, foi consumida por uma mentalidade pasteurizada para um público mais alargado como uma espécie de ansiolítico. Nesse sentido, Hecker menciona também um outro tipo de degradação – a uberização da música, feita para servir como ferramenta corporativista de produtividade.

Em todos os casos, a música é mais do que uma tentativa de interpretar em tempo real as variações do clima. Em sua tradução do antropoceno, os músicos se relacionam diretamente com o ambiente à sua volta numa tentativa de transformar a nossa percepção e, consequentemente, a qualidade de nossa relação com o planeta.

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ARTISTA: Lea Bertucci

Autor:

é músico e escreve sobre arte