5pra1: Marina Lima

A carioca cravou seu lugar na MPB, já foi roqueira de guitarra em punho, experimentou pelo pop e se aventurou nas noites pela música eletrônica – celebramos uma sequência arrasadora que demonstra todo seu poder musical, poético e radiofônico

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Fotos: Antonio Guerreiro

A série 5pra1 apresenta e destrincha cinco discos que servem como primeiro mergulho na obra de um artista.

 

“A minha vida tem uma menina chamada Marina / Ela é a cobra do meu paraíso / Ela é a dobra do meu paraíso / Ela é a sobra do meu paraíso / Ela é a sombra do meu paraíso / Ela é a cobra”, diz o poema “Cícero e Marina”, feito por Antonio Cicero e que aparece no disco Fullgás (1984). Antonio é poeta, filósofo, imortal da Academia Brasileira de Letras e irmão de Marina – seu parceiro de música e composição. Nos anos 1990, Marina cantaria em “Meus Irmãos” os versos “Os homens podem muito pouco / O tempo sempre sabe mais como agir”. Nós realmente podemos muito pouco, mas Marina, a cobra no nosso paraíso, pode mais. E sempre fez jus ao seu poder de sedução e encantamento.

Marina é compositora, cantora e instrumentista. Sabe como poucos dominar a canção, passeando pelo pop, pelo rock e pela MPB de forma sagaz e inteligente, fazendo os poemas mais complexos se tornarem canções populares a serem reproduzidas à exaustão em ondas FM. Em 45 anos de carreira, Marina já foi musa da MPB, já foi roqueira de guitarra em punho, já experimentou no pop e se aventurou nas noites pela música eletrônica. São mais de 20 discos entre trabalhos de estúdio e discos ao vivo, em cifras altas de vendagens nos anos 1970, 80, 90 e 2000.

Com esse currículo caudaloso e complexo, Marina manteve sempre a dignidade e o respeito pelo seu ofício, sem medo de falar de forma aberta sobre quem é. Sempre foi abertamente lésbica e fala sobre seus amores com a mesma liberdade que qualquer pessoa heterossexual falaria – porém, sua liberdade muitas vezes causou incômodo aos que eram mais caretas. Enfim, ela seguiu passando e eles ficaram pra trás, enquanto Marina seguia mirando o futuro. Uma das graças de suas canções está, inclusive, no fato de que Marina é lésbica e Antonio Cicero é gay, sendo assim, as personas líricas se confundem: se Cicero escreve uma canção sobre um homem, na voz de Marina isso pode ganhar sentidos dúbios, como numa brincadeira em que os eu-líricos se transmutam.

Nascida no Rio, criada nos Estados Unidos – seu pai era economista e ela viveu parte da infância em Washington –, Marina se tornou uma espécie de epítome do que era ser moderno e cool no Rio de Janeiro dos anos 1980, “top less na areia / virando sereia”, em passeios de uma cantora que começou na MPB, mas encontrou o sucesso nacional em canções de amor que passeiam do rock às baladas românticas. Na virada para os anos 1990, ela cantou as desilusões de um mundo que via a AIDS encerrar com uma geração e fazer seus sonhos ruírem, “jamais foi tão escuro / no país do futuro / e da televisão”.

Nessa mesma década, uma série de problemas levaria Marina a perder a voz. Segundo a cantora, suas cordas vocais foram lesionadas durante um procedimento mal sucedido de aspiração na garganta. Até a virada dos anos 2000, ela seguiu cuidando da voz e buscando meios de retornar ao canto. Em 2003, seu Acústico MTV marca de vez sua volta às paradas. Nos anos 2000, a menina carioca trocaria o Rio pela cidade de São Paulo, para dizer então que “o entardecer de São Paulo / não é como o Rio […] o entardecer de São Paulo / é outra promessa”.

Entre essas mudanças, há muitos discos bons e recheados de canções que provam a maestria de Marina em lidar com a música e a poesia, por isso mesmo é difícil selecionar cinco discos. Mas, aqui, optamos por um recorte bem específico que vai de 1985 a 1993. Grandes clássicos ficaram de fora, como Certos Acordes (1981) e Fullgás (1974), bem como não nos debruçamos sobre os recentes e excelentes discos que ela produziu, porém é inegável o poder que há nesses cinco discos aqui escolhidos. Poucos artistas têm em sua discografia uma sequência tão arrasadora quanto essa que escolhemos.

 

Todas (1985)

Fullgás, o disco, havia sido um hit arrasa-quarteirão em 1984. Uma perfeição pop-rock-anos -80, uma espécie de marco zero de uma nova Marina que nascia ali. Todas vem logo no ano seguinte e é surreal a qualidade poderosa das canções que surgem aqui, elevando o nível ainda mais: “Difícil” (Marina-Cicero), “Nada Por Mim” (Herbert Viana e Paula Toller), “Eu Te Amo Você” (Kiko Zambianchi) e uma outra gama de faixas que respiram pop rock da década e que marcam a modernidade desse momento. Riffs pegajosos, sopros sedutores e um clima de que ser jovem em 1985 era o momento – e nós que estamos aqui hoje perdemos aquelas festas, aquelas praias e aquela gente elegante-bonita-e-sincera.

De cabelos lisos e curtos, óculos escuros e look de roqueira, Marina se marca ali com estética moderna e arrojada que seria apenas reforçada pela icônica capa do disco ao vivo de Todas, com Marina de jeans rasgado, casacão preto e segurando uma guitarra do modo mais sexy e poderoso que já tinha se visto. Com produção de João Augusto, Todas é bem disco de um tempo “polaroide anos 80”, para o bem e para o mal, mas talvez seja essa a sua sedução e por isso parece tão interessante ainda hoje.

Destaques: “Difícil”, “Nada por mim” e “Já fui”

 

Virgem (1987)

Com produção de Leo Gandelmam e direção artística de Marina, Virgem traz grandes clássicos como “Preciso Dizer Que te Amo”, “Doce Espera”, a faixa-título e o hit “Uma Noite e 1/2″. Esse disco tem aquela energia pós-praia, final de tarde, o lusco-fusco, um drink, o tilintar do gelo, o corpo ainda com areia em partes indefinidas e aquela sensação de eterno verão. No repertório há três parcerias de Marina com Antonio Cicero, além de outras três canções assinadas apenas por Marina – a tríade que encerra o lado B do disco. Além disso, “Preciso Dizer Que te Amo” (Dé, Cazuza, Bebel Gilberto) marca a primeira gravação dessa canção, e é um registro muito simbólico, já que Marina e Cazuza eram amigos muito próximos.

Esse é o primeiro disco de Marina a ser lançado também em CD, e vendeu mais de 160 mil cópias naquele ano. Uma nova demonstração da máquina de hits que a cantora era nesse momento. O interessante aqui é que não há um desgaste da fórmula, o que seria bem possível após Fullgás e Todas, mas pelo contrário, até os maneirismos dos anos 80, com seus exageros de sopros, tem um charme único. Virgem é uma viagem no tempo de rara beleza, sem contar que “Virgem”, a canção, é um dos momentos mais inspirados da parceria Marina-Cícero: “As coisas não precisam de você / Quem disse que eu / Tinha que precisar”.

Destaques: “Preciso dizer que te amo”, “Virgem” e “Doce Espera”

 

Próxima Parada (1989)

Pela primeira vez, Marina não aparece na capa do disco – aqui, estradas e abstrações tomam conta da arte. Após o play, já no primeiro verso de “$Cara”, ela diz os emblemáticos versos “Jamais foi tão escuro / No país do futuro / E da televisão” para depois encerrar com “Mil novecentos e não sei quanto / É fim de século e no entanto / É meu / Meu cada gesto e cada segundo / Em que te amar é um claro assunto / No breu”. Próxima Parada é um disco que capta de forma suntuosa o zeitgeist dessa virada dos anos 1980 para os 1990, tanto que diferentes fantasmas parecem já estar apontados nessas pequenas canções de amor e melancolia: a epidemia do HIV/AIDS, o caos econômico do Brasil, as incertezas do futuro, parece estar tudo ali, exposto da maneira mais íntima possível, isto é, em canções de amor.

A beleza de “À Francesa”, a delícia oitentista de “Encarando Você” e a força pop rock da canção que dá nome ao disco. É nesse aqui que se encontra a versão de Marina para “Garota de Ipanema”, canção que ganharia um videoclipe e entraria para a história como primeiro videoclipe transmitido pela MTV. Era o começo de uma nova era, outras paradas.

Destaques: “$Cara”, “À Francesa” e “Próxima Parada”

 

Marina Lima (1991)

Marina passa pela primeira vez a assinar como Marina Lima; por isso esse disco leva apenas o seu nome completo. Esses eram os anos 1990, o século 21estava mais perto, as desilusões da década eram rascantes, mas o futuro parecia ali tão próximo, e Marina Lima, o disco, é uma lufada de modernidade. O trabalho traz clássicos como “Acontecimentos”, “Grávida”, “Criança”, “Não sei dançar”… Um mar de hits. Em junho daquele ano, ela disse, ao O Globo, que estava “grávida da vida” e que estava se sentindo muito mais segura de onde queria chegar. E estava certa: antes mesmo do lançamento do disco, a faixa “Acontecimentos” já tocava na novela O Dono do Mundo e estava em alta rotação pelas FMs do Brasil. Então, quando o disco chegou às prateleiras, ele já vinha com um hit.

O álbum foi disco de platina, que na época era vendagem acima de 250 mil cópias. “Criança” ganhou um clipe dirigido por Gringo Cardia, daqueles clipes que reprisavam a exaustão na MTV. Cardia, aliás, é o responsável pela icônica capa: Marina, uma roupa justa, uma blusinha laranja brilhante e os braços abertos, livre. Marina Lima segue assustadoramente moderno, mesmo tendo sido referência para uma gama de cantoras nos anos 1990. Disco fundamental e excelente porta de entrada para quem quer se aventurar pelo universo da cantora.

Destaques: “Grávida”, “Criança” e “Acontecimentos”

 

O Chamado (1993)

O Chamado é um disco mais ensimesmado e, por isso mesmo, o disco mais melancólico dessa lista. Em entrevista à Folha de S. Paulo, nos anos 1990, Marina explica que O Chamado “era uma necessidade pessoal. Algo como um rito de passagem. Suei em cima daquilo. Fui até o fundo para resolver. Aquele disco me libertou”. E essa imersão pessoal de Marina foi abraçada pelo público de uma forma surpreendente: o trabalho vendeu 200 mil cópias em 1993. “Quando você está passando por um momento mais frágil, e é acolhida, você fica enternecida. Te dá uma gratidão. Fiquei feliz. Me ajudou inclusive a superar os problemas”, disse Marina.

O Chamado é sobre nossas dores solitárias, sobre intimidades, medos e fragilidades. “Carente profissional” (Cazuza e Frejat) abre o disco de forma bela, para mais adiante sermos abraçados por canções como “O Chamado” (Guilherme Bizzotto e Marina Lima), pela dolorosa e bela “Meus Irmãos” (Marina), até sermos atingidos de forma incomparável por “Pessoa” (Claudio Rabello e Dalto) – ouça essa aqui com um coração partido e você entenderá tudo! Para fechar de forma mais alto-astral, vem “Nightie Night”, com participação de Pat MacDonald. Se você não se apaixonar por Marina com essa aqui, desista, seu coração está perdido.

Destaques: “Pessoa”, “Nightie Night” e “Meus Irmãos”

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ARTISTA: Marina Lima

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