Tragicômica

Ao lançar clipe da faixa “Humour” com exclusividade no Monkeybuzz, Valesuchi discute política, raízes, música e catástrofes iminentes

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Fotos: Pedro Pinho

“Esta é a trilha sonora perfeita para os próximos episódios TRAGICOMIC do nosso aqui-e-agora latino-americano”, anuncia o selo MAMBArec a respeito do oitavo lançamento. Segundo Valesuchi, DJ e produtora chilena radicada no Rio de Janeiro,”é sobre contradições e sobre as tragédias bobas em que estamos imersos, as tragédias privadas e as públicas” desse momento da história. As seis faixas do LP Tragicomic refletem o clima contraditório embutido no título do disco. No videoclipe de “Humour”, que estamos lançando hoje com exclusividade no site do Monkeybuzz, a DJ e modelo Valentina Luz torna-se uma figura dupla: são duas Valentinas em uma só. O cenário é o centro de São Paulo em obras, devido à especulação imobiliária e defesa dos interesses privados. Com direção da cantora, atriz e cineasta CARNEOSSO (também vocalista do Teto Preto), o clipe já está disponível. Assista!

Em Tragicomic, o fluxo de sonoridades cruas, beirando o Lo-Fi em “Impermanence” e “Death” desembocam em uma melodia espacial com vocais etéreos e beats às vezes tão frenéticos que aparentam prever a explosão cada vez mais próxima de uma bomba-relógio emocional. Os destroços colidem na bipolar “Humour”, única faixa gravada em um “live take” e também a escolhida para o primeiro videoclipe. Na sequência, chega a hora da melodia e das batidas ganharem contornos mais industriais, sujos. Depois, “Peace” chega delicada: é a aterrissagem após um voo turbulento

O voo turbulento, no entanto, parece não acabar no disco. Valesuchi está apreensiva com a situação política de sua terra natal que, neste momento, encontra-se afundada em uma onda de protestos contra os resultados degradantes que a privatização generalizada gerou no Chile. São as chagas da ditadura de Augusto Pinochet ainda expostas em uma sociedade regida pela mesma constituição escrita nos anos de chumbo. Uma das grandes queixas da população é a situação de miserabilidade os aposentados, por conta da previdência desestatizada. O Chile tem o maior índice de suicídios entre idosos, em função das más condições de sobrevivência na velhice.

Todo o processo de fazer música é uma ferramenta de autoconhecimento – Valesuchi

E o prenúncio deste cenário está começando a se desenhar no país que a DJ escolheu viver também. Sustentada pelos ideais ortodoxos neoliberais da Escola de Chicago, onde estudaram economistas chilenos e o atual ministro da economia brasileiro, Paulo Guedes, o modelo da reforma de previdência chilena está sendo seguido à risca pelo governo federal na estruturação da proposta de reforma das pensões no Brasil. Durante a entrevista com o Monkeybuzz, a artista falou a respeito da cena chilena e contextualizou a atual conjuntura política local.

O EP é intitulado “Tragicomic” e a imagem da sua mãe está na arte da capa. Por que você escolheu uma foto dela? É também alguma forma de homenagem?

O nome “tragicômico” é um conceito complexo e interessante, representante de várias coisas e que se aplica a muitas situações dentro da minha pesquisa, como a verdade e a contradição intrínsecas à palavra. Conversamos com a Katy Kakubo sobre a arte. Eu queria que tivesse imagens da minha família e da relação com minha mãe. Não só com minha mãe, mas acabou sendo ela porque a foto é muito boa. Esse momento pretendia ser o de uma foto incrível, mas minha mãe está comendo com os olhos um pouco fechados, é daquelas fotos meio “erro”. Acho tragicômico guardar um momento meio ruim. Tem essa coisa da foto analógica, não dá para ver a foto antes. É toda uma ilusão: “Ai, que maravilhoso esse momento, vamos lembrar, e, “urgh, a foto ficou meio estranha”.

Minha mãe é maravilhosa. Mas, é muito contraditória a forma em que a relação com a mãe se altera nas etapas da vida. Quando você nasceu, sua mãe era tudo, e você depende 100% dela. Depois, você vira adolescente. Eu, pessoalmente, tive muitos problemas com minha mãe, lógicos e naturais de uma adolescente e mulher que tem uma mãe superprotetora. Agora, ela é a pessoa que eu mais amo e admiro. É minha ídola! Obviamente, é uma homenagem. Tragicômico é isso. Eu já dei várias dores de cabeça para ela (risos).

A mixagem foi no estúdio da Panal Records? Como você e Elias Deepman se conheceram e resolveram trabalhar juntos?

Foi super natural querer trabalhar com ele. Cada vez que escolho alguém para mixagem do meu trabalho é sempre com a intenção de aprender. Porque é um processo super técnico e o Elias é maravilhoso. Ele é DJ, produtor e dono do selo Panal Records, que também tem minha amiga Kamila Govorcin. E sabia que aprenderia muito, porque ele é muito talentoso em tudo que faz, criador de um som muito bem acabado, e eu queria entender a técnica dele. A cada mixagem eu me interesso por aprender novas técnicas e chamo outra pessoa diferente.

Existe um motivo especial para o trabalho ser lançado em fita?

Nós queríamos fazer um lançamento físico. Mas, vinil, por questões… Ah, muitas questões… Eu não tenho esse tesão por vinil. Acho, cada vez mais, um formato superestimado, considerando nossas condições [econômicas] latino-americanas. Fita, desde quando eu era criança, foi meu primeiro formato, antes do CD. Era como se comprava música na época. A fita é um formato maravilhoso, é super bonito como objeto, emite um som especial para caralho. Fazia sentido esse formato físico possível para nós. Tem uma certa nostalgia, por que não? (risos) Fazer fita estava no nosso alcance.

Por que justo a “Humour” foi a única que você não gravou?

Quem gravou foi o meu grande amigo Sávio de Queiroz . Algumas faixas são mais velhas. Ele estava me ajudando a gravar essas músicas há um tempo. E a “Humour” foi ele que dirigiu essa gravação, foi uma tomada ao vivo, um “live take”. Essa é a única do disco neste formato. As outras foram um processo mais devagar de gravação. Gravamos na casa do Sávio, no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro

Cada vez que escolho alguém para mixagem do meu trabalho é sempre com a intenção de aprender. – Valesuchi

As gravações foram um processo lindo, paciente, e muito mara com o produtor Bruno Palazzo, que é um queridão. Deu um super trabalho passar uma masterização digital para fita, são tecnologias e formatos diferentes. O suporte físico altera o som [digital], então, trabalhamos muito a mixagem na versão fita. O Bruno é incrível, ele sabe muito, manda muito bem. Ele tem estúdio incrível e uma filha maravilhosa que chegou no final do processo. A bebezinha nos acompanhava escutando o que estávamos fazendo, foi incrível tê-la por perto.

A composição do EP foi uma espécie de exorcização de sentimentos? Como foi o processo de transformar tais sensações em música?

Acho essa pergunta um pouco difícil de responder. Todo processo de fazer é música é uma ferramenta de autoconhecimento, não tem outra para mim. Eu não faço pensando no clube. Eu não faço música pensando se vai ser ouvida. Eu faço música abrindo o corpo, os ouvidos e minha capacidade de escutar meus pensamentos e traduzi-los artesanalmente. É um mistério, eu não me enfrento a fazer música com uma missão concreta. Eu meio que direcionei o disco para marcar uma obra, que fosse um disco que valha porque vale a pena ouvir. Meu amigo Matias Aguayo (mentor do selo Cómeme) está sempre ouvindo minhas demos, dando conselhos. Ele falou algo sobre isso há um tempo: “Valen, faça um disco worth-while-listening , que valesse a pena ser escutado, sacou? Eu não aguento mais release por releases.” Não sei, se lançar uma faixa e tal, eu também precisava me relacionar com a obra pelo todo, numa narrativa planejada sentida, com direção. Os nomes das tracks e o processo criativo de todas são de épocas diferentes. Algumas faixas eu não sei como fiz, aconteceram, saíram… A maioria, na verdade, eu nem lembro de estar estar sentada corrigindo. Não é um processo consciente, não é algo que eu sei fazer, [elas] aconteceram. É um processo muito intuitivo de revisão dos tempos, paciência, de ver como evolui para você e a intenção é quanto traduz no tempo essa música. Mudaram de nomes, mudaram de ordens várias vezes. Não é um processo simples nem fácil para mim. É um esforço de confiança, de silenciar mentalmente para deixar a música acontecer e dar uma direção de como isso vai ser jogado no mundo, sabe? Porque hoje tem tanta parada, que ninguém escuta. A direção, a ordem das faixas e os nomes seguem um sentido muito pensado.

Você é uma das artistas a frente do Coro-Fundo Festival. De qual anseio, inspiração ou necessidade adveio a ideia de criar esta iniciativa musical? Quais são as próximas edições?

A Coro–Fundo surgiu neste ano como uma plataforma de projetos que deseja ajudar no desenvolvimento de cultura noturna aqui no Rio de Janeiro. A ideia é que, através da iniciativa, a gente consiga desenvolver projetos em três áreas: uma voltada para festas e festivais, a outra para conteúdo online e outra para encontros fora da pista. Esses projetos todos abordam as temáticas importantes para o nosso entendimento de cena e do nosso movimento de festas na cidade. Fazemos um festival formado só por artistas locais, vídeos sobre projetos, temas e pessoas que são importantes para o nosso movimento, organizamos encontros para escutar pessoas atuantes nessa subcultura e também festas. A próxima edição é a segunda edição do festival, que dessa vez vai ter 31 artistas do Rio, e 3 pistas durante 14 horas.

Quais problemas, vistos como impulsionadores dos protestos, você já sentiu na pele utilizando serviço público no Chile?

É importante mostrar um contexto para quem não está ligado com os acontecimentos de lá. O problema vem de muitos anos. O que está explodindo é um mal estar e cansaço sobre o abuso sistemático do povo, das pessoas da classe média, da classe mais pobre. A ditadura não acabou no Chile, porque ainda não mudou a constituição, feita durante a ditadura. Foi estabelecido um sistema econômico laboratório gringo do neoliberalismo da escola do Milton Friedman, em que desde a água até o transporte e educação, enfim, tudo é privatizado total ou parcialmente. Esta conjuntura possibilitou o enriquecimento de famílias que estão no poder. São 100, 120, famílias donas do Chile todo, desde faculdades até os meios de comunicação, as drogarias, as águas, tudo, saca? Os territórios, tudo, tudo. Os chilenos estão cansados, porque o custo de vida é muito caro. Quem teve oportunidade de visitar o país já se ligou. A respeito da pseudo estabilidade, em que todo mundo acreditava,eu sempre falei: é só uma tela. A galera estava ficando muito materialista, muito individualista. Tornou-se uma sociedade de pessoas estressadas porque precisam comer e ainda ter algum dinheiro no final de mês. A galera tem dois trabalhos, muitos até mais de dois para tentar se sustentar, pois o custo de vida, realmente, é muito alto. As drogarias e o sistema de saúde são caríssimos, as esperas para utilizar os serviços são enormes.

Atualmente, governo está controlado por Sebastián Piñera, um bilionário, ex-dono da Latam, dono de times de futebol, já roubou bancos, é um podre, ladrão. O irmão dele [o economista José Piñera] foi o Ministro do Trabalho e Previdência Social de Pinochet, e responsável por implementar um dos anos da reforma da previdência, recentemente a ser feita no Brasil. Andrés Chadwick, ministro do Interior e da Segurança Pública, é primo do presidente e apoiador declarado do governo Pinochet. Existem fotos do ministro quando garoto acompanhando o “fucking” Pinochet. Hoje acabou de ser demitido, ele é o ministro líder da repressão aos estudantes. Os jovens, os mais velhos, todos estão de saco cheio. A situação está difícil para caralho, assim como o custo de vida e a dignidade das pessoas. Hoje, ocorre uma violação bizarra de direitos humanos, as pessoas estão sendo torturadas, os militares entram nas casas e prendem os dirigentes de lutas estudantis. É um pesadelo, mas, ao mesmo tempo, as pessoas estão muito unidas nas ruas, eu ouço o relatos dos meus amigos e da minha família. É muito angustiante estar longe. Eu viajaria hoje para o Chile, porém, todos os voos estão cancelados. Eu viajaria, mas o festival que eu ia foi cancelado e minha passagem aérea também, e tenho que ter certeza de voltar. Minha mãe está me pedindo para eu não ir, ela sabe que eu estaria na rua. Cara, está muito difícil, tá foda.

Em 2018, uma onda forte feminista tomou conta do país contra a educação sexista. Quais reflexos dessa atitude feminina resultaram em ações e mudanças positivas para as mulheres?

Sobre a onda feminista, foi só mais um grito de luta. Porque o Chile tem um aspecto peculiar a respeito do papel da mulher na sociedade. Falam muito sobre o Chile ser um país de “guacho”, palavra indígena mapuche traduzida como “filho abandonado pelo pai”. Eu vejo um matriarcado muito louco, matriarcado machista. A verdadeira figura de poder e de força na sociedade chilena é a mãe. Mas o homem chileno e a sociedade em geral é muito misógina, como todo latino-americano. Eu penso na geração da minha avó, apesar da família ser árabe, com outra camada cultural de machismo, a evolução da geração da minha avó até a minha, passou pela geração da minha mãe, a pessoa quem mais atravessou esse machismo, pois foi somente eu que tive oportunidades inimagináveis para minha mãe. Sobre minha avó, nem dá para falar. Mas, eu vejo as mulheres muito espertas no Chile, elas já acordaram. De algum jeito, é o Chile feminista de sempre, porém, somente agora a população está mais consciente. As garotas estudantes são maravilhosas, basta ver deputadas como a Camila Vallejo, ela vai para o congresso junto da filhinha dela quando não tem com quem deixar e foda-se. Ela era dirigente estudantil e hoje é deputada.

Quais DJs e produtoras chilenas mulheres valem a pena estar no radar de quem deseja conhecer mais sobre a cena local?

Andrea Paz, Kamila Govorcin, Mamacita, Dadalú, Fakuta, Kinética, Ochi, VGV, Alisu, Iarahei, Josefina Gonzalez, Javi de la Rosa, xDanxgelx, Fernanda Arrau, Elisita Punto, Valentina Villarroel, NiñosIndigo, Lia Nadja, Planta Carnivora, Palta Mango, Lorelei…

De que forma o sexismo se manifesta na cena eletrônica?

Sobre sexismo na cena é difícil falar. Por um lado, é a agendas de cotas para mulheres, pois toda mulher DJ ou artista inserida nesta cena já sentiu alguma vez estar atuando somente porque falaram: ” Ah, precisamos de minas”. Chamaram para fechar cota. É difícil por que a cena toda é controlada por homem hétero, baixos sistemas de controle de poder, e não é só machismo. São lógicas de trabalho de estéticas que não nos pertencem. São códigos externos. Faz uma enorme diferença quando nós mulheres usamos os espaços conscientes de que somos iniciantes ou iniciantes somente para nós. É preciso nos empoderar. Temos que mandar muito bem, não dá para ficar tranquila só porque “ah, tem mina no lineup”. Meninas, vamos explorar nossos talentos de um milhão de jeitos e ser muito boas no que fazemos. Nada de ficar confortável nesses novos espaços, é necessário explorar de uma forma profunda, consciente e responsável sobre o significa, nos dias de hoje, escutar uma mulher tocar. É importante se aprimorar. Sejam melhores cada vez mais, fiquem mais confortáveis tecnicamente, precisamos aprender o tempo todo. Ter nossos espaços e total essência, não só pelo fato de ser mulher, não é só mulher, é o não-masculino. Somos artistas, somos latinas, estamos passando por um processo difícil, como corpos, como tudo. Precisa fazer uma pesquisa harmônica em tudo que produzimos como pessoas, artistas e humanos. Não tem que refletir apenas na arte, todas as frentes de pesquisa são importantes.

Você criou “Tragicomic” planejando sair na MAMBArec ou era algo que você já pensava em lançar há tempos? De que forma nasceu a ideia de lançar pela MAMBArec, foi um convite, por exemplo?

Eu não sabia o quanto eu poderia discotecar ou me sentir bem numa festa até eu tocar na Mamba Negra. Estava claro que a festa era acerca de todos, acerca de tudo que está acontecendo ali, sobre a liberdade permitida pela festa, a energia da Mamba. É a festa mais especial do mundo, com certeza. O processo do disco nasce do processo enquanto artista, de como falar o que tenho sentido. Agora, ao fazer disco com elas preparando lançamento, sinto o reflexo de tudo que tenho sentido desde quando as conheci. É um profundo respeito e apoio como artistas, carinho. Representam as lutas delas com as quais eu me identifico. É como artista, como mulher, o jeito que elas fazem as coisas. Desde o mínimo ao grandioso, é uma constante.

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ARTISTA: Valesuchi

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