Stevie Wonder e a vida como ela é

Há exatos 45 anos, o lendário músico fechava sua sequência arrasadora de cinco discos com o ambicioso e imbatível “Songs In The Key Of Life”

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Fotos: Reprodução

No primeiro fim de semana, lucrou 7 milhões de dólares. Após 10 dias, esse número subiu para mais de 21 milhões. Durante o verão de seu lançamento, no meio da década de 1970, a obra foi apreciada por mais de 67 milhões de pessoas e, no ano seguinte, arrebatou três estatuetas na premiação mais importante da temporada. Hoje, é celebrado como um marco que repaginou a ideia do que um blockbuster poderia ser e, além disso, mostrou de vez a força criativa de um jovem de 30 e poucos anos procurando se firmar: Steven. O Spielberg.

Pouco mais de um ano depois do lançamento e sucesso estrondosos de Tubarão (1975), o quase xará do diretor, Stevie Wonder, quatro anos mais novo, preparava-se para soltar Songs In The Key Of Life (1976), encerramento da sequência arrasadora de cinco discos iniciada em 1972, com Music Of My Mind. Amparado por um contrato de valores exorbitantes fechado com a Motown – só para ter uma noção: a quantia superava a soma dos contratos de estrelas como Elton John e Neil Diamond – e com dois gramofones de Álbum do Ano na estante, por Innervisions (1973) e Fulfillingness’ First Finale (1974), Stevie era forte postulante ao trono Pop dos anos 1970. E para divulgar o aguardadíssimo novo disco do provável dono do Pop dos anos 1970, a gravadora pegou emprestado o manual da campanha promocional de Tubarão. O rosto de Stevie se espalhava por Nova York em pôsteres de 60×270 e a expectativa ao redor do lançamento aumentava a cada dia – o único problema é que o disco não saía e a divulgação, havia quase um ano, ia a todo vapor. Stevie, vivendo entre Manhattan e Los Angeles, do alto de seus 25 para 26 anos, vivia uma crise. Já que falamos de cinema, a saga de Stevland Hardaway Morris até a metade dos anos 1970 é cheia de ares cinematográficos, a começar pelo seu nascimento.

Stevie Wonder nasceu prematuro na cidade de Saginaw, no Michigan, no dia 13 de maio de 1950. Ainda extremamente frágil, foi colocado em uma incubadora para sobreviver, mas o próprio oxigênio bombardeado prejudicou o desenvolvimento dos vasos sanguíneos da parte de trás de seus olhos – condição conhecida como retinopatia da prematuridade. Como uma Providência, Stevie Wonder, para sobreviver, seria cego. E assim, nasciam também os melhores ouvidos do século 20. Aos três anos de idade – além de ser capaz de distinguir o barulho de uma moeda de 50 centavos caindo sobre a mesa do barulho de uma moeda de 25 centavos caindo sobre mesa – ele já criava linhas ao piano e batucava com talheres em panelas e baldes, segundo sua mãe, Lula, de maneira espantosa. Seu pai, um músico frustrado, o instigava a cantarolar e experimentar melodias quando ele ainda mal sabia falar. Mas nem tudo era música na vida do Little Little Stevie. Entre as histórias absurdas envolvendo as agressões de seu pai, houve uma que acabou sendo decisiva. Após mais uma briga, Lula abandonou seu marido (30 anos mais velho) e levou os três filhos com ela para Detroit, onde, além de ter contato com diversos universos musicais da cidade – do Jazz ao Gospel e Doo Wop –, Stevie cruzou com Berry Gordy Jr, o fundador da Motown.

E aí o mundo então conheceu Little Stevie: o topo da Billboard com “Fingertips (part 2)”, em 1963, os hits “Uptight (Everything Is Alright)”, “I Was Made To Love Her” e “Nothing’s Too Good for My Baby” na sequência, além da celebrada versão de “Blowin’ In The Wind”, de Bob Dylan. O caso é que, antes de completar 20 anos de idade, Stevie Wonder já era capaz de entregar canções como “For Once In My Life” e “My Cherrie Amour” e, em 1970, assinou a produção de Signed, Sealed and Delivered, algo como o encerramento de sua “fase jovem”. Ainda houve o subestimado Where I’m Coming From (1971) antes do início de uma das sequências mais impressionantes da história da música moderna.

Como Beatles, especialmente na segunda metade dos anos 1960, Prince nos anos 1980, Kendrick Lamar nos anos 2010, Gilberto Gil (também) nos anos 1970 ou PJ Harvey nos anos 1990, Stevie vivia um furor criativo de um tipo raro. Os quatro primeiros discos da chamada Fase Clássica – Music Of My Mind (1972), Talking Book (1972) e Innervisions (1973), Fulfillingness’ First Finale (1974)  – renderiam longos textos individuais , tantas são as canções imortais que saíram deles: “Superstition”, “You Are The Sunshine Of My Life”,  “Higher Ground”, “Living For The City”, “Don’t You Worry About A Thing”, “You Haven’t Done Nothin'”, “He’s Misstra Know It All”, “Boogie On Reggae Woman”, e mais dezenas de tesouros que não foram lançados como single. Tudo em pouco mais de três anos.  Foi um período em que Stevie – já consideravelmente versado no show biz após 10 anos nos quais foi de estrela mirim para um jovem artista no mínimo promissor – soube dar passos experimentais sem perder o calor Pop. As referências de Jazz acumuladas desde cedo encontraram lugares improváveis e exuberantes na maturidade, mesmo aos 20 e poucos anos, de um compositor de calibre radiofônico.

Ele parecia munido de um imparável espírito de invenção, afinal, em boa medida, ele inventava/sintetizava/antecipava muito de como o Pop – pós-Beatles, menos psicodélico/roqueiro e mais funkeado – soaria por pelo menos quatro décadas seguintes, de Prince e Michael Jackson a Bruno Mars e Justin Timberlake. De 1972 a 1976, Stevie tentou, testou, viajou, mergulhou no mundo dos synths, e, claro, o legado dessas produções é evidente, mas ao mesmo tempo há um brilhantismo, um verniz único, que só aparece nessa ousadia espontânea de alguém que está inventando algo ou crê que está inventando algo. Sempre ficam sobras no meio das tentativas – intencionais ou não – de atualizar uma linguagem, inaugurar um novo momento. Colher inevitavelmente artifícios e cacoetes do passado e do presente, mas querer se ver independente deles, reprogramar a estética vigente. E talvez seja ainda mais interessante uma experimentação que quer emplacar no mainstream, como uma negociação ou um desejo de domar o mercado e se embrenhar de verdade na cultura pop. Você vai notar algo de Stevie Wonder em Bruno Mars, você vai notar algo de Spielberg em trocentos blockbusters por aí, você vai notar algo de Sopranos em Breaking Bad, Mad Men ou Lost – mas existem coisas, excedentes da audácia de inventar, que só estão e estarão em Stevie Wonder, Tubarão e Sopranos. E mesmo em meio a tantas práticas que se tornariam comuns entre os sucessores, ali, na hora de confeccionar o molde, nem sempre todas as cenas do roteiro empurram a narrativa, nem sempre um episódio vai terminar com um cliffhanger, nem sempre a irresistível “Isn’t She Lovely” terá que ter 3 minutos e ser escolhida como single. Esse aspecto imprevisível, na realidade, torna-se ativo fundamental para a singularidade e a magia dessas obras. Porque não existia um manual de convenções – ele estava sendo criado em tempo real.

Songs In The Key Of Life representou, para Stevie – aos 26 anos, pai pela primeira vez e um astro que mudou os anos 1970 –, a missão de condensar todo esse ímpeto. Mas, como eu disse lá em cima, o disco não saía.

À época, dois anos era tempo considerável entre um lançamento e outro, e com o ritmo frenético e bem-sucedido que o músico havia engatado, era tempo além da conta. Em meio ao escândalo de Watergate e a eterna Guerra do Vietnã, Stevie se sentia frustrado com os Estados Unidos e chegou a cogitar seriamente uma mudança para Gana – de onde ele acreditava que vinham seus ancestrais. Inclusive, ele já arquitetava um suposto “show de despedida”. Até que no meio do caminho, a vida como ela é: surgiu um contrato de 37 milhões de dólares e a liberdade criativa total frente à gravadora. O jeito foi voltar para o estúdio. Após alguns atrasos e adiamentos – que fizeram o staff da Motown envolvido no disco vestir camisetas com os dizeres “We’re Almost Finished” –, e passando antes pelos títulos provisórios FFF2, We Are Seeing A Lot e Let’s See Life The Way It Is, o ambicioso Songs In The Key Of Life, com dois LPs e um EP, chegou ao mercado no dia 28 de setembro de 1976.

Muito já foi dito sobre SITKOL – inclusive isso, provavelmente –, mas nunca é demais celebrar uma obra que simplesmente sintetiza (fundamentalmente os anos 1970 de) Stevie Wonder. Síntese, aliás, talvez nem seja a palavra correta: é mais uma surra de Stevie Wonder. Musical e tematicamente. Com o recém-lançado synth polifônico da Yamaha em mãos, o GX-1, que ele chamava carinhosamente de “Dream Machine”, Stevie explora a nostalgia (“I Wish”) e os amores perdidos, encontrados e eternos (“Joy Inside My Tears”, “Knocks Me Off My Feet”,  “Ebony Eyes”, “As”), fala de viagens interplanetárias (“Saturn”), orgulho racial (“Black Man”), presta tributo ao Jazz (“Sir Duke”, na letra e no som), às influências latinas (“Another Star) e homenageia a paternidade (“Isn’t She Lovely”) e brinca de orquestração (“If It’s Magic”). Tudo amarrado por uma musicalidade explosiva e inspirada, que abriu espaço para faixas com mais de 6 minutos transformadas em pequenas jams. Não há exatamente coesão ou um “conceito” percorrendo o disco – é Stevie Wonder se esbaldando. Ele comprovou que, como seu quase xará Steven fez em 1993, lançando A Lista de Schindler e Jurassic Park, era versátil e esfomeado até as tampas. No livro Stevie Wonder: A Musical Guide To The Classic Albums, o autor Steve Lodder define SITKOL como “caminhar por uma galeria com pinturas de diversas fases de um artista e, apesar da grande variedade de influências e o largo espectro de cores, você reconhece que se trata do mesmo artista”. “Você não se incomoda se as pinturas formam algo como uma soma total, você apenas está feliz que elas tenham sido agrupados em um único lugar para curtir”, completa.

Uma vez eu li sobre uma espécie de paradigma literário-antropológico a respeito de Shakespeare que dizia que se toda a população do planeta terra fosse dizimada e a única coisa que restasse fossem as obras do dramaturgo britânico, e se os alienígenas, milhões de anos depois, enfim desbravassem a terra e aprendessem a ler, eles saberiam exatamente como era a natureza humana. Acho que Songs In The Key Of Life tem muito disso com relação a Stevie Wonder e a uma bela porção do Pop, em um sentido bem amplo. Elton John, por exemplo, já declarou: “onde quer que eu vá pelo mundo, sempre levarei uma cópia de Songs In The Key Of Life. Para mim, é o melhor álbum já feito, e eu estou sempre em êxtase depois de ouvi-lo”; Kanye West, em uma de suas declarações autocelebratórias, disse: “Eu não estou tentando competir com o que há por aí hoje. Eu realmente estou tentando competir com Innervisions e Songs In The Key Of Life”; Beyoncé, Pharrell, Mark Ronson, Adam Levine, Mariah Carrey… Stevie Wonder e Songs In The Key Of Life são inescapáveis quando o assunto é Pop. Com 130 músicos creditados – entre eles, ilustres como Herbie Hancock, George Benson e Minnie Riperton –, o disco foi sucesso absoluto e permaneceu no topo das paradas americanas por nada mais nada menos do que 14 semanas consecutivas. Além disso, “Sir Duke” e “I WIsh” chegaram ao primeiro lugar do ranking de singles e o disco também levou o Grammy de Álbum do Ano, o terceiro consecutivo de Stevie.

Aliás, na premiação anterior ao lançamento de Songs In The Key Of Life, quando Paul Simon ganhou o prêmio máximo da noite por Still Crazy After All These Years, quebrando a sequência de Stevie, ele disse: “Agradeço a Stevie por não ter lançado um álbum e ter dado uma chance para o resto de nós”. E pensando em um garoto cego que saiu do gueto de Michigan para o calor de Los Angeles, enfrentou o show biz armado de bongo e gaita e, de um adolescente talentoso, transformou-se em um multi-instrumentista lendário e de impacto sem precedentes, às vezes parece mesmo que é Stevie Wonder e o resto.

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ARTISTA: Stevie Wonder