5pra1: Alice Coltrane

Um passeio emocional por algumas das obras mais arrebatadoras da artista que, por meio do som, perseguiu o livre, o eterno e o transcendental

Loading

Fotos: Chuck Stewart

A série 5pra1 apresenta e destrincha cinco discos que servem como primeiro mergulho na obra de um artista.

 

É um desafio e tanto colocar em palavras justamente a obra de alguém que partilha da noção de que elas são sagradas; e, assim, as poupa. Em entrevistas ao podcast Balanço e Fúria, a curadora de arte e pesquisadora musical Nath Grilo explica que as tradições do continente africano entendem de forma tão profunda o poder das palavras, que aprendem a se expressar por corpo, barulho e silêncio.

Alice Coltrane fez isso como poucas. Desde a primeira vez que me deparei com sua obra, há anos, sassaricando pelo YouTube, ela se tornou uma figura de liberdade preta para mim. Quem foi essa mulher, preta, retinta, que peitou a viagem de fazer música com harpa? Misturando elementos do hinduísmo, gospel e africanismo, dando vida a músicas tão complexas, mas profundamente universais? Em plenas décadas de 1960 e 1970?

A multi-instrumentista foi avessa a confinamentos. Liberdade, amor, espiritualidade e transcendência guiaram sua carreira de mais de 40 anos, e a colocaram na linha de frente da vanguarda da música instrumental, sobretudo, o jazz. Free jazz, spiritual jazz, avant-gard jazz, ambient music, gospel e música clássica são etiquetas sonoras que pairam ao seu redor.

O spiritual jazz em si é uma categoria no mínimo porosa, uma vez que música preta é essencialmente espiritual. “As músicas pelas sociedades melanizadas são como uma forma de alcançar plenitude e equilíbrio”, destrincha Nath Grilo, ao comentar que sociedades africanas que viviam em constante estado de arte. Alice Coltrane seguiu esse caminho. A própria harpa é amplamente utilizada no oeste do continente africano. Tambores são apenas um dos elementos desse território, que também têm as cordas como base em muitas culturas.

Alice McLeod nasceu na prolífica Detroit, em 27 de agosto de 1937, em um lar onde a música pulsava. Sua irmã se tornou compositora da Motown e o meio-irmão, baterista de jazz. A espiritualidade também vem de berço: sua mãe integrava o coral de uma igreja. Com apoio do pai, Alice iniciou a carreira pelos clubes da cidade, tocando piano e, ao fim dos anos 1950, viajou a Paris estudar jazz com Bud Powell, sem deixar de se conectar com a música clássica. À época, se relacionou com o cantor de jazz Kenny Clark, com quem teve sua primeira filha.

Na década seguinte, voltou a Detroit e passou a tocar no quarteto de Terry Gibbs, até entrar para a banda de John Coltrane. Ele se torna seu parceiro de música, vida e espírito. A musicista viveu ao seu lado durante o ápice da carreira do saxofonista. Com ele, teve três filhos. E esteve ao seu lado até sua morte, em 1967. A partir daí, Alice focou em sua carreira solo, se converteu ao hinduísmo e ganhou o nome sânscrito de Turiyasangitananda – algo traduzido como “a transcendental senhora da alta música abençoada”.

Os anos de 1960 e 1970 são de intensa produção musical, enquanto 1980 e 1990 são marcadas por sua ausência do mercado formal em favor de uma vida ainda mais monástica, mas acompanhada de gravações musicais independentes, mais focadas na expressão através da música hindu. Nos anos 2000, retorna a gravações e shows – e, para alguns, ao jazz. Em 2007, aos 69 anos, parte para o plano espiritual.

Como bell hooks observa, somos ensinados a acreditar que o lugar do aprendizado é a mente, não o coração. Mas a música e a música de Alice Coltrane vão muito além do racional. Assim, as obras selecionadas para este 5pra1 são as que mais me arrebatam enquanto jornalista e pesquisadora musical. Coincidência ou não, durante a imersão, constatei também que as 5 obras reunidas aqui são pontos de virada na carreira de Alice Coltrane.

 

A Monastic Trio (1968)

Impressionante pensar que o álbum de estreia de sua carreira solo nasce do luto. A Monastic Trio foi gravado entre janeiro e junho de 1968, antes que a morte de John Coltrane completasse um ano. Com o carimbo da lendária Impulse!, o disco lançado em dezembro traz, na capa, a dedicatória: “Essa música é dedicada ao místico, Onehdaruth, mais conhecido como John Coltrane durante o período de 23 de setembro de 1926 a 17 de julho de 1967”. “Onehdartuh” também é a música de abertura do disco na tracklist original.

O registro é marcado pela intimidade. Gravado em Nova York, na John Coltrane Home, histórica última casa em que o saxofonista residiu, a obra conta com a participação de nomes ligados ao casal e à efervescente cena de jazz, ao leste do Estados Unidos. Musicistas renomados, como Rashied Ali e Ben Riley se revezando na bateria, Pharoah Sanders no clarinete, flauta e saxofone, e Jimmy Garrison no contrabaixo.

Alice assume o piano e a harpa e assina todas as composições, além da produção do álbum. Uma postura de protagonismo de quem nunca foi apenas a esposa de Coltrane. A Monastic Trio captura uma musicista preparando seu salto, com sonoridade contemporânea, piano eloquente e harpa sinuosa.

Destaques: “Gospel Trane”, “Lovely Sky Boat” e “Oceanic Beloved”

 

Journey In Satchidananda (1971)

A capa de seu quarto álbum anuncia ares de guinada. Diferente do disco de estreia – que evocava uma Alice mais clássica, com cabelos escovados e figurino 60s energy –, aqui ela aparece neste com uma bata estampada, de mangas compridas, em estilo indiano, e black power marcante. Mas as mudanças não eram apenas externas.

Nos primeiros anos após a morte de John Coltrane, Alice experimentou insônia, alucinações e rápido emagrecimento. Tudo isso a levou a mergulhar ainda em um processo espiritual; é nessa fase que ela se torna discípula do líder hindu e indiano Swami Satchidananda e visita o Sri Lanka e a Índia. Essa experiência toma uma proporção de jornada, como o próprio título enuncia.

Não há como passar batido pela escuta de Journey in Satchidananda. Por meio de texturas fluidas, meditativas e progressivas, Alice nos comunica suas impressões, sensações e elaborações profundamente íntimas, mas não menos expansivas. Interessante pensar que uma das faixas homenageia o deus Shiva, “Shiva-Loka”, e seu reino. No hinduísmo, Shiva compõe a trimúrti – espécie de trindade – ao lado dos deuses Brahma e Vishnu, e representa o poder da destruição, conhecido por gerar transformações orgânicas, psíquicas e emocionais. De fato, Alice enfrentava um processo de despedida, de destruir para fazer nascer outras coisas. Dali em diante, sua carreira jamais seria a mesma.

Journey in Satchidananda é o som da transmutação na discografia e vida de Alice. Lançado pela também pela Impulse!, traz a aura oriental pela qual seu trabalho seria conhecido, sem perder o berço do jazz de vista, além das influências do norte de África e do Oriente Médio. A parceria com Pharoah Sanders, com saxofone ainda mais hipnótico e interações na percussão, e a bateria de Rashied Ali se repetem. As cordas são reforçadas por Tulsi na tambura, Vishnu Wood no alaúde, e Cecil McBee no contrabaixo nas gravações que ocorreram novamente no John Coltrane Home.

“Something About Coltrane” é a exceção, com gravação ao vivo no The Village Gate, clube de Nova York, com Charlie Haden no contrabaixo. Majid Shabazz produz lampejos sonoros com sinos e tamborim, enquanto Alice amplia sua harpa e piano, assinando novamente composição e produção. Em 2020, o álbum foi citado entre os 500 Melhores Discos de Todos os Tempos pela Rolling Stone.

Destaques: “Shiva-Loka”, “Stopover Bombay”, “Journey in Satchidananda”

 

Universal Consciousness (1971)

O quinto álbum de Alice Coltrane é tão superlativo quanto o universo. Há uma constelação de instrumentos e musicistas e uma ampliação das paisagens sonoras. O registro, captado no mesmo estúdio e lançado pela mesma gravadora dos outros dois, foi feito após uma viagem da artista à Índia e meses depois do lançamento de Journey in Satchidananda. As experiências com o hinduísmo e a cultura indiana escancaram toda uma vida dedicada à espiritualidade e à música. Aqui, Alice se volta à harpa e ao órgão, e a conexão com o segundo instrumento se dá pelo desejo de produzir uma música meditativa, sem interrupções.

O clássico explicita o brilhantismo de Alice como arranjadora, anuncia a presença dos conjuntos de cordas que se fariam presentes nos discos posteriores World Galaxy (1972) e Lord of Lords (1972 ), e toma dimensão de orquestra: são, ao menos, 10 musicistas no projeto. O banquinho da bateria é revezado entre Rashied Ali, Clifford Jarvis e Jack DeJohnette. Os violinos, outra novidade da obra, são arranjados por um dos criadores do Free Jazz, Ornette Coleman. O que se revelam nos mais de 30 minutos de disco são tramas que partem do caos e se encaminham para a suavidade, em um passeio vertiginoso pelas dimensões cósmicas acessadas por uma Alice desprovida de limites.

Destaques: “Universal Consciouness”, “Oh Allah”, “Sita Ram”

 

Eternity (1976)

Poucas coisas são tão grandiosas quanto os primeiros 55 segundos de “Spiritual Eternal”, faixa que abre este disco. Thom Jurek, autor da resenha sobre o disco no AllMusic, faz coro, ao descrever que: “Dentro dos primeiros 30 segundos” da faixa, “o ouvinte encontra a paleta completa do pensamento musical de Alice Coltrane”. O órgão soa como um uivo, que convoca a chegada de demais instrumentos a fim de formar uma matilha sonora.

O registro é resultado de significativas mudanças na vida de Alice. Ela agora reside em Los Angeles, Califórnia, onde funda, em 1975, o Vedantic Center – primeira comunidade espiritual hindu daquele estado –, e compõe agora a gravadora Warner Bros. As transformações aprofundam a consciência musical de Coltrane, que apresenta uma assinatura de arranjos ainda mais esplendorosa e cirúrgica.

Ela faz o que quiser: solo de harpa, trabalho em trio, regência de orquestra (o álbum conta com mais de 20 instrumentos) e até a releitura de “Spring Rounds”, do balé The Rite Of Spring, do maestro russo Ígor Stravinsky. A artista toca teclado, harpa, órgão, tamborim, e assina as composições, arranjos e direção criativa. Não há formatos rígidos, mas, sim, pigmentos musicais à disposição das inconfundíveis pinceladas de Alice Coltrane. Menção honrosa à influência afro-cubana em “Los Caballos”.

Destaques: “Spiritual Eternal”, “Wisdom Eye”, “Los Caballos”, “Om Supreme”

 

Transcendence (1977)

Lançado pela Warner, a obra soa mais como um frame do processo de pesquisa musical e mergulho espiritual de Alice Coltrane. Assim como o antecessor, Radha-KrsnaNama Sankirtana (1976), não foi bem compreendido à época, sendo celebrado no século seguinte. A tracklist se divide em uma primeira parte em que Alice toca ao lado de um quarteto de cordas e uma segunda parte, acompanhada por um grande coro.

Todas as canções são hinos de devoção hindu. A fusão entre o hinduísmo e as raízes de Alice são celebradas em “Sivaya”, com órgão groovado que nos faz lembrar o gospel de Detroit. Já a faixa-título é uma das mais exploratórias, fazendo referência aos acordes tânicos presentes em “Universal Consciousness”. Aqui, Alice toca harpa, tamborim, piano, teclado, órgão e sinos vento, além de novamente assinar os arranjos.

Destaques: “Transcendence”, “Sivaya”, “Ghana Nila”, “Vrindavana Sanchara”

Loading

Autor: