5pra1: Everything But The Girl

Do “sophisti-pop” e os toques de jazz até o mergulho na dance music, os grandes momentos da união entre Tracey Thorn e Ben Watt

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Fotos: Divulgação

 

A série 5pra1 apresenta e destrincha cinco discos que servem como primeiro mergulho na obra de um artista.

 

 

Nos anos 1990, o chique era ser “cool” – e na hora de explicar o significado da gíria “cool”, o mais correto seria mostrar um videoclipe do Everything But The Girl, algum ensaio promocional da dupla inglesa ou mesmo suas participações no Top of the Pops, clássico programa da BBC. Tracey Thorn e Ben Watt são cool por que o são, não é uma atitude blasé, algo programado, montado para ser assim, só o é: de vida discreta, com um olhar atento para as tendências da música e com a capacidade de transformar a vida em canções, a dupla criou, entre hiatos e silêncios, uma carreira de mais de 40 anos com dignidade e talento raros.

Para entender um pouco desse mistério que ronda o talento e as qualidades do Everything But The Girl, podemos retornar à história pessoal de Tracey e Ben: os dois se conheceram na Universidade de Hull, no nordeste da Inglaterra. Isso era 1982, ambos já tinham carreiras solo independentes, mas acabaram se unindo na música e na vida. Em 1984, eles lançariam o primeiro disco do EBTG, Eden, e também se formariam na faculdade. A partir dali nascia uma longa e diversa carreira na música e uma história de amor exemplar, pois é de se contar nos dedos os casais do mundo da música que conseguem trabalhar tanto tempo juntos sem macular sua relação íntima. Tracey e Ben ficaram anos como namorados e oficializaram o casamento em 2009.

Enquanto dupla musical, o Everything But The Gil tem uma história diversa, com uma evolução sonora muito curiosa, pois passa do jazz, do folk e da bossa nova para a música eletrônica, entre o drum and bass e o trip hop. Nessa trajetória o som deles já foi conectado com uma série de outras tags, do indie pop à new wave, mas acho que a mais curiosa delas seja o “sophisti-pop”. Seria um pop mais sofisticado, chic, que mesclaria o jazz e o soul com os ditames do pop dos anos 1980, especialmente da new wave inglesa. Dentro do sophisti-pop se incluem nomes como Roxy Music, Bryan Ferry, Scritti Politti, Simply Red e Sade – um grupo de artistas que também podemos chamar de diverso.

Nos anos 1990, com uma versão remix de “Missing”, feita pelo DJ norte-americano Todd Terry, o Everything But The Girl se tornou febre na cena clubber e ganhou os corações da comunidade LGBT. A partir dali, uma guinada muda os rumos sonoros do Everything But The Girl, que mergulha de forma profunda na música eletrônica e em todas as experimentações que estavam pipocando na segunda metade da década de 1990. Um novo fôlego e um sucesso mundial se desencadearam, mesmo assim, ao estilo Tracey e Ben, os dois decidiram aposentar a dupla em 2001. De lá pra cá, os dois fizeram trabalhos solos excelentes (sério, vale mergulhar nas obras dos dois, é pop perfection). Ben Watt trabalhou muito tempo como DJ e com pesquisa musical,  e ambos têm uma interessante carreira na literatura, porém, para nossa tristeza, até hoje não temos livros deles traduzidos para o português – alô, editoras!

Importante voltar no tempo aqui: em 1992, Ben foi diagnosticado com a Síndrome de Churg-Strauss, uma rara doença autoimune que modificou grande parte de sua vida, história que ele conta no livro Patient – The True Story of a Rare Illness (1996). Quando a pandemia de covid-19 começou em 2020, os cuidados com a saúde de Ben foram redobrados – e ele e Tracey ficaram mais do que nunca fechados em um universo muito íntimo. Suas turnês solos, seus compromissos profissionais e sociais, tudo ficou paralisado e esse foi o momento de eles cogitarem de novo a possibilidade de trabalhar de forma conjunta. 2022 acabou se tornando o ano de retorno do Everything But The Girl aos estúdios e de lá nasceu o disco Fuse, que saiu agora em 2023, 24 anos depois de seu disco anterior.

Com a cabeça sempre no futuro, o Everything But The Girl voltou não para repetir velhas fórmulas, mas sim para olhar para o presente de forma inteligente e refinada, como sempre o fizeram. A voz de Tracey está cada vez mais bela e agora aparece transformada em jogos com softwares como o auto-tune e em produções que dialogam com o que a música eletrônica tem produzido nos nossos tempos. Com tudo isso, Fuse é um disco que versa de forma poderosa sobre conexões humanas e sobre o nosso retorno às pistas de dança, tudo isso enquanto joga com batidas que apontam o novo.

A dica é que você pode começar realmente no sentido contrário: ouça o Fuse agora e depois mergulhe nos discos do passado. E para te ajudar nesse mergulho, separamos aqui cinco discos que dão conta dessa diversidade de sonoridades do Everything But The Girl. Aproveite!

Eden (1984)

Quando Ben e Tracey se conheceram na faculdade, ambos tinham contratos com a Cherry Red Records, uma gravadora independente inglesa, pela qual ambos lançaram seus primeiros trabalhos solos entre 1982 e 1983. Foi lá também que eles lançaram seu primeiro single como Everything But The Girl, “Night and Day”, em 1982, um cover de Cole Porter, além de duas canções originais da dupla – uma delicinha. Porém, já em 1983, eles conseguiram um contrato com a Blanco y Negro Records, parte da WEA Records Ltd., e começaram a produzir seu disco de estreia ao lado de Robin Millar, que naquela mesma época estava produzindo o disco Diamond Life, da Sade – eles gravavam todos no mesmo estúdio e podemos dizer que é aí um dos pontos de nascimento da tal estética “sophisti-pop”.

Gravado em 1983, por questões contratuais, a estreia do EBTG só saiu comercialmente em 1984, e, quando do lançamento, a própria dupla não estava mais interessada naquelas sonoridades – tanto que em menos de quatro semanas pós-lançamento eles já começariam a divulgar novos singles, com outras sonoridades. Essas outras experimentações podem ser vistas na compilação Everything But The Girl, também de 1984. O disco foi pensado para o mercado internacional e misturava algumas faixas do Eden, com b-sides e outros singles avulsos – foi essa a edição lançada no Brasil nos anos 1980.

Eden é um disco diferente em comparação com a discografia da banda, mas é um passeio interessantíssimo por um universo de jazz, música pop do início dos anos 1980 e toda uma série de referências, inclusive bossa nova. Sobre isso, vale se atentar aos créditos desse álbum: a percussão é assinada pelo brasileiro Bosco de Oliveira, violonista, compositor e arranjador de carreira internacional.

Destaques: “Tender Blue”, “The Spice of Life” e “I Must Confess”

 

Idlewild (1988)

Quarto disco da dupla, Idlewild foi lançado no início de 1988 e já marca alguma espécie de mudança nos rumos do Everything But The Girl. Em sua autobiografia Bedsit Disco Queen: How I Grew Up and Tried to Be a Pop Star (2013), Tracey Thorn explica que as composições desse disco surgiram de forma diferente, mais próximas de pequenas narrativas do que essencialmente de canções pop. Ao mesmo tempo, Ben Watt já estava explorando outras possibilidades de composição com mais synths e o uso dos teclados eletrônicos – mais anos  1980 impossível. Fato é que a gravadora Blanco y Negro Records duvidava das qualidades do disco, não enxergando ali nenhum hit possível. Eles estavam errados? Não necessariamente, pois nenhum dos singles do disco performou de forma considerável, mas por outro lado, o álbum vendeu muito bem, com mais de 100 mil cópias só no Reino Unido e foi aclamado por crítica e público.

Com produção do próprio Ben Watt, Idlewild é um álbum de transição, o jazz aparece menos, as referências do passado parecem diminuir e surgem sonoridades ainda mais conectadas ao tal “sophisti-pop” da época. Aqui o EBTG flerta mais com o pop e o rock produzidos na época, porém com uma complexidade maior do que muitos de seus pares. É interessante observar a maturidade das composições de Tracey e as nuances da produção do disco, que conseguem passear de forma segura pelo que era pop e cool na época, mas ainda assim gerando um disco sólido, que parece ao mesmo tempo um fruto claro dos anos 1980 e uma peça de qualidade pop atemporal.

Destaques: “I Always Was Your Girl”, “Goodbye Sunday” e “Lonesome for a Place I Know”

 

Amplified Heart (1994)

O Everything But The Girl começou os anos 1990 de forma confusa, como se estivesse perdendo o bonde. Worldwide (1991) não foi bem recebido pela crítica e vendeu pouco entre os fãs, já Acoustic (1992) foi bem de vendas, mas é um álbum de covers que soa menor ao lado de outros lançamentos da banda. Amplified Heart, lançado em junho de 1994, é essencialmente um álbum de folk pop, de caráter acústico, com foco nas letras intrincadas de Ben e Tracey, que conseguem aqui um excelente equilíbrio entre suas intenções narrativas e seu caráter pop. São canções que se repetem na cabeça do ouvinte, que cativam pelo seu caráter romântico e que demonstram o amadurecimento da voz de Tracey Thorn.

Produzido por Tracey, Ben e o músico John Coxon, Amplified Heart é um disco extremamente conectado com as sonoridades em alta na primeira metade dos anos 1990 e flerta com aquela cena de música alternativa que surgia na época. O oitavo disco do EBTG marcaria uma mudança drástica no trabalho da dupla. Com uma relação já desgastada depois de 10 anos e a sensação de que as coisas não estavam mais tão interessantes quanto antes, a Blanco y Negro Records decide não renovar o contrato com o EBTG. Porém uma virada aconteceria: a faixa “Missing” foi relançada em uma segunda versão “Missing (Todd Terry club mix)”, feita pelo DJ Todd Terry e que foi aos poucos crescendo e crescendo nas paradas de sucesso. No início de 1996, a música chegaria à segunda posição no Hot 100 da Billboard dos Estados Unidos, levando o Amplified Heart a vender mais de 200 mil cópias no país – calcula-se que o disco vendeu mais de um milhão de cópias no mundo. Obviamente, aí já era tarde demais para a Blanco y Negro e o EBTG já tinha assinado com a Virgin Records e iria lançar um novo disco, em nova guinada.

Destaques: “Missing”, “Rollercoaster” e “I Don’t Understand Anything”

 

Walking Wounded (1996)

Com o sucesso eletrônico do remix de “Missing”, Ben se aprofundou ainda mais em suas pesquisas sonoras e foi um momento em que a dupla se desafiou de nova forma: Ben compôs aqui muitas das músicas de forma instrumental e Tracey colocou as letras sobre aqueles beats – é importante destacar aqui que Tracey já tinha experiências trabalhando ao lado do Massive Attack em diferentes faixas, mas eram projetos pontuais e não tinham o mesmo peso desse novo cenário. Aqui, Ben contou com o apoio na produção de John Coxon e nomes fundamentais da cena eletrônica dos anos 1990: o próprio Todd Terry (importante DJ norte-americano de house music), o escocês Howie B (forte nome do trip hop e parceiro de artistas como Björk) e o inglês Rob Haigh (conhecido também como Omni Trio e nome relevante da cena inglesa de música ambiente). Isso tudo gera o que podemos dizer, sem sombra de dúvidas, que é a obra-prima do Everything But The Girl. E não somos apenas nós que estamos dizendo, pois a própria Tracey Thorn considera o Walking Wounded como o “triunfo pop” da banda. E isso se refletiu também em vendas: o disco vendeu mais de um milhão e 300 mil cópias no mundo todo.

Walking Wounded tem a força de encapsular uma era em formato pop. O EBTG une aqui sonoridades que eram “o momento” na segunda metade dos anos 1990, como o downtempo, o drum and bass e o trip hop e casa tudo isso de forma completamente natural com a voz delicada de Tracey Thorn. É como se a voz dela sempre tivesse nascido para isso, esse encontro entre a brutalidade gélida dos beats quebradiços e a suavidade de seu canto. Além disso, Walking Wounded tem uma complexidade em suas composições, há uma maturidade, uma intensidade que parece vinda desse fluxo de renovação pelo qual a banda passou. É como se os novos mergulhos sonoros tivessem se refletido em tudo que eles estavam fazendo nesse momento. Para coroar isso, ainda temos uma das capas mais icônicas da banda, em fotos do brasileiro Marcelo Krasilcic, fotógrafo paulistano que conseguiu captar os anos 1990 com um frescor atemporal.

Destaques: “Before Today”, “Walking Wounded” e “Big Deal”

 

Temperamental (1999)

Ben Wyatt e Tracey Thorn sempre viveram de maneira comum. Por mais que tivessem uma carreira longeva, eles nunca tinham sido estrelas internacionais de presença constante em todos os meios e isso meio que virou de ponta cabeça com o Walking Wounded – e, obviamente, isso tudo impactou na composição de Temperamental. Para completar, no meio desse furacão de sucesso mundial, Ben e Tracey viraram pais de gêmeos. Quando o novo disco começou a ser preparado, Ben mergulhou ainda mais fundo em sonoridades da música eletrônica, indo do trip hop ao deep house, e em Temperamental ele é o responsável por grande parte das composições, enquanto Tracey estava numa estafa com a maternidade. Ela revela também em sua autobiografia que se sente nesse disco como uma vocalista convidada, uma vez que em várias faixas ela simplesmente só gravou o vocal. Tracey gravava os vocais tarde da noite, depois que as crianças dormiam, pois era o momento em que ela tinha mais tempo livre para si.

É notável que em Temperamental eles estão lidando mais a fundo com os impactos da fama e dessa demanda extremamente intensa de trabalho. O disco acaba se aprofundando mais na pista de dança, as faixas parecem mais intensas e velozes, enquanto as composições parecem mais vulneráveis e delicadas. No final das contas, foi um disco divisivo, com críticos falando mal, outros despejando louros; assim como uma parte do público acabou se afastando da banda. Por outro lado, o Temperamental fez sucesso na caixinha da “dance music” e marcou mais um momento do EBTG mirando o novo.

É um disco muito com aquela cara de “fim de século”, há uma modernidade latente, mas uma quase desilusão. É um fechamento de ciclo poderoso para a banda que entraria em hiato a partir de 2001. Temperamental pede o nosso tempo para mergulhar nessa intensa noite ao lado do Everything But The Girl, mas garantimos que vale a pena a viagem.

Destaques: “Blame”, “Hatfield 1980” e “The Future Of The Future”

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