Letrux abre a casa e solta as feras

A cantora carioca fala sobre “Letrux Como Mulher Girafa”, seu terceiro disco solo, que desafia os sentidos ao se guiar por liberdade, aforismos e instintos

Loading

Fotos: Julia Rodrigues

Na faixa “As Feras, Essas Queridas”, Letícia Novaes escreve um prelúdio dos novos tempos: “Abri a casa, deixei sair as traças”, canta ela entre beats eletrônicos. A mensagem, que parece simples, requer atenção e trata de comunicar algo além. Síntese do disco Letrux Como Mulher Girafa, lançado no fim de junho, a composição entrega o desejo da artista de continuar destrinchando as emoções, ainda que de um jeito mais leve. Nesta narrativa que pouco ou quase nada tem de pranto, os bichos estão à solta.

São eles que dão título às dez faixas e seis vinhetas que compõem um registro marcado pela organicidade de sons e sentidos. Aranhas, hienas, crocodilos e “panteras megeras” preservam em si um mistério, que lhes permite se manifestar tanto em sua forma natural quanto como representantes de um estado de espírito. “Não lembro exatamente do dia em que falei ‘Eureka! O disco vai ter esse nome’”, conta Letrux, em entrevista ao Monkeybuzz. “Mas ficamos confinados por tanto tempo que a vida foi virando uma coisa animalesca”.

Ela se refere ao período da pandemia de Covid-19 em que decidiu deixar o Rio de Janeiro e passar uma temporada no litoral fluminense, em São Pedro da Aldeia. A estadia, que a levou a conviver pela primeira vez com um animal doméstico, um gato, deu origem ainda ao média-metragem Viver é um Frenesi. O filme tem direção de Marcio Debellian. A aproximação com a natureza, notável em cenas suas dentro e fora do mar, foi a responsável por levá-la a encontrar o denominador comum dessa nova jornada.

“Percebi que a gente é também é meio bicho. Eu sofria, pensava no governo, na vacina, nos horrores, mas também tinha uma hora em que dava paz não pensar tanto, só comer, dormir. Foi aí que, naturalmente, percebi que muitas das minhas composições tinham um mesmo elemento central”, explica. Nessa incursão pela selva, o LP retoma um desejo de caçar e revisitar aspectos espinhosos da existência – algo que a cantora e escritora já fazia nos tempos do duo Letuce, que formou com o então companheiro Lucas Vasconcellos, hoje um grande amigo.

“O animal não tem intelecto e não é racional, mas conserva em si uma complexidade enorme. Fiquei com a sensação de que eles são mais crus, mais diretos, com hábitos e expressões específicas. Por isso quis que as canções carregassem essa simplicidade”

No álbum Estilhaça (2015), o último lançado por eles, Letícia menciona na faixa “Aristoteles Laughs” a sagacidade dos animais, atentos aos sonhos, desejos, medos e estranhezas humanas. Essa observação levou a artista a encontrar na girafa, espalhafatosa aos olhos, mas igualmente discreta aos ouvidos, um paralelo com sua forma de se apresentar.

“É engraçado pensarmos que as girafas não emitem sons que os ouvidos humanos possam escutar. Sempre tive algum fascínio com isso”, diz. “As pessoas têm uma sensação de que por ser vocalista, sou uma espécie de protagonista. Mas gosto de ficar na sombra, sou super caseira. De alguma maneira, sinto que sempre fui um pouco girafa, e essa identificação me valeu muitas coisas”.

Seu trabalho como compositora é prova disso. Os discos Letrux Em Noite de Climão (2017) e Letrux Aos Prantos (2020), lançados com a banda formada por Arthur Braganti (teclados), Navalha Carrera (guitarras), Jessica Zarpey (percussão), Thiago Rebello (baixo) e Lourenço Vasconcelos (bateria), chegaram como um zeitgeist geracional ao concentrarem a abordagem de situações tragicômicas e a ideia de se encontrar na própria densidade.

“Gosto quando as pessoas dizem que minhas canções conseguem apreender um período, ou aquilo que está ao redor. Isso é fruto de uma observação que se assemelha à da girafa, aquela que tudo vê do alto. Poderia não me servir em nada, quem sabe só sensações, mas calhou de eu vir como artista nesta vida. Tenho a chance de transformar isso em composição”, explica, divertindo-se. “Quando saio, nem relaxo tanto e chega a ser engraçado. Vejo trejeitos, ouço conversas, modismos, jeitos de falar. Me sinto uma esponja, e talvez por isso seja até bom que prefira ficar na minha, em casa”.

Dedicado a Rita Lee, falecida cerca de dois meses antes da estreia, o álbum tem produção de João Brasil, com quem Letícia chegou a tocar no início da carreira e, mais adiante, viria a produzir o terceiro disco do Letuce. O número três adquire um simbolismo extra. Mais maduros, ambos acenam para a mãe do rock, muito além de sua devoção aos animais, na tentativa de descobrir novas formas de expressão.

Com composições mais diretas, a obra herda uma das principais habilidades da roqueira: a de mergulhar em subjetividade por meio de discursos enxutos. As interpretações despertam na mesma frequência em que o desejo de dançar, como ocorre em “Louva Deusa”. Na faixa, Letrux se apropria do ritual de acasalamento dos insetos, em que a fêmea termina devorando seu parceiro, para discutir as dualidades de um romance. As impressões instantâneas levam o ouvinte a um estado de reflexão em que é preciso decifrar camadas de áudio e texto, em um trabalho quase intuitivo.

“O animal não tem intelecto e não é racional, mas conserva em si uma complexidade enorme. Fiquei com a sensação de que eles são mais crus, mais diretos, com hábitos e expressões específicas. Por isso quis que as canções carregassem essa simplicidade”, diz Letrux. “Quando olhamos para um sujeito, é mais difícil de identificar o que ele é. Não temos a certeza se é um psicopata, um romântico, um babaca. Mas se vejo um escorpião, sei que fudeu. Sabemos exatamente do que é capaz. São formas diferentes de se comunicar”.

“Quando olhamos para um sujeito, é mais difícil de identificar o que ele é. Não temos a certeza se é um psicopata, um romântico, um babaca. Mas se vejo um escorpião, sei que fudeu. Sabemos exatamente do que é capaz. São formas diferentes de se comunicar”

Uma vez que o amor se revela um tema inesgotável na obra da cantora, é possível afirmar que em Letrux Como Mulher Girafa este se apresenta em seu estado mais selvagem. É o que acontece, por exemplo, em “Zebra”, colaboração com Lulu Santos. Mesmo deslocada em meio à atmosfera que os demais instrumentais sustentam, a música evoca um flerte fatal, que evidencia a tentação de morder a carne em um bote bem dado. Já em “Leões”, críticas ao capitalismo se entrelaçam à doçura de uma sobrevivência compartilhada, uma referência à leitura de A Revolução dos Bichos, clássico do autor britânico George Orwell. “O amor se transforma e não tenho a pretensão de falar dele como Goethe, que escreveu Os Sofrimentos do Jovem Werther, ainda que eu ame esse livro”, diz Letrux. “Enquanto sentimento, ele vai mudando, como os acordos, as modas e as vontades, mas é um tema que persiste em nos deixar perguntas como ‘Por que a gente sente essa merda?’ ou ‘ Por que eu gosto de alguém?’. A resposta está num lugar muito primitivo. Às vezes, até mesmo em um cheiro. Sempre vou querer falar sobre esse assunto, e sei que nunca vou conseguir domá-lo, dominá-lo. A graça é essa, querer, tentar e nunca conseguir”.

Sem singles prévios e contrariando a lógica das plataformas de streaming, Letrux Como Mulher Girafa foi lançado de uma só vez. O formato em que a obra está disposta também causou certa estranheza, sobretudo, pela inclusão de ruidosos interlúdios, que se firmam como enigmas. Dita decisão estética acena, igualmente, para o reino animal e sua impossibilidade de compreensão absoluta.

“São faixas muito efêmeras. Sinto uma curiosidade das pessoas a respeito dos meus rascunhos e do processo criativo. Quis incluí-los como um presente para mostrar que a concepção de um disco é uma jornada da heroína, que se deixa atravessar por muitos momentos”, diz Letrux. “Não são faixas finalizadas, mas elas dizem nas entrelinhas que aquele ato me levou a algo. Sou uma cantora que adora verbos, sujeitos e predicados, às vezes, as músicas são tão explicadas, tão didáticas. Parecia hora de embarcar em uma reticência”.

Várias inquietações expressas nas canções e poemas de Letícia Novaes, que também tem dois livros publicados, passam pelo divã da terapia. Há três anos adepta da psicanálise, a artista diz anotar sonhos e simbologias que encontra pelo caminho na tentativa de driblar a própria memória ruim. Ela também busca o autoconhecimento a partir de um “Teste Psicológico Animal”, que encerra a obra falando de flamingos e baleias. Agora cética em relação às coincidências, transforma notas e devaneios em objetos de trabalho.

Nesse processo, inclui-se a identificação de obviedades e uma pretensa superioridade humana, ambos temas que conduzem a balada “Formiga”. Em pouco mais de quatro minutos, a faixa soa como uma tentativa de revisão dos fracassos. O verso “But I’m not different from that shit” se repete, expondo em metáfora os frutos que alguém espera nascer de uma terra arrasada.

“As pessoas têm uma sensação de que por ser vocalista, sou uma espécie de protagonista. Mas gosto de ficar na sombra, sou super caseira. De alguma maneira, sinto que sempre fui um pouco girafa, e essa identificação me valeu muitas coisas”

“Fico pensando como é possível um animal como esse carregar 60 vezes o próprio peso e nunca romper com a coletividade. As formigas são camaradas, nunca vi uma formiga solitária. Logo, algo há de crescer a partir do que se faz. Merda é adubo. Tanta merda aconteceu no Brasil ao longo desses anos que se nada florescesse seria uma pena. É preciso ver as coisas e se emocionar, fazer algo a partir disso”, afirma.

Foi com esse raciocínio que, durante uma viagem ao exterior, ao visitar uma exposição da artista plástica Louise Bourgeois, deparou-se com um par de aracnídeos gigantes, um tanto emblemáticos. Famosos por representar a psique feminina, a dor psicológica e a beleza, os referidos animais inspiraram a composição de “Aranha”, uma ode à natureza da própria família.

“A gente sempre tenta reparar as coisas antes de entregar os pontos. A aranha é assim, do mesmo jeito. Não é um bicho que enlouquece quando você tenta destruir a teia, ela faz de novo, de novo e de novo”, conta Letrux. “Digo que desisto e jogo a toalha, mas antes dou muitas chances. Fazer um disco é fazer uma teia, é perceber que as galinhas não param de botar ovos, as pessoas continuam tendo filhos. Vivemos numa eterna boneca russa e reparar, sobretudo agora, pode ser um mantra”.

Loading

ARTISTA: Letrux