SINAPSE: nave maternal dourada

Julia Holter, Jorge Ben Jor; “Something in the Room She Moves”, “Magnólia”

Loading

Fotos: Mariana Poppovic

Um músico e suas livres associações nas zonas de contato da arte (às quintas-feiras).

 

 

IN UTERO

Jorge Ben, Julia Holter e o mundo amniótico

 

Nunca ouvi uma declaração do próprio Jorge Ben Jor a respeito do significado de “Magnólia“, mas, para mim, a música soa como uma declaração de amor a uma criança prestes a nascer. “Já consultei os astros / Ela chega na primavera”, diz o músico no álbum A Tábua de Esmeralda, um disco impressionado com os ensinamentos do hermetismo e com os conceitos da alquimia de Nicolas Flamel. Em seguida, ele constrói poeticamente essa “nave maternal dourada”, que evoca o aconchego intrauterino, “Feita de um metal miraculoso / Com janelas de cristal / E forro de veludo rosa”.

Escrevo sobre Jorge Ben e essa sensação de maravilhamento porque a artista norte-americana Julia Holter lançou recentemente Something in the Room She Moves, álbum que opera também sob o signo da maternidade. Nele, a artista constrói, com sintetizadores fluídos e vozes oníricas, um retrato emotivo, que soa como se estivesse submerso, onde a reverberação vai e volta em uma sensação de intimidade e segurança.

O título é uma inevitável referência aos Beatles, mas, no caso de Holter, a frase “something in the room she moves” dá a entender o seu próprio corpo como esse espaço de segurança, a barriga que recebe as alegres – ou incômodas – pontadas vindas dos chutes do bebê. Mas evoca também, quem sabe, a imagem dos pais diante de um novo significado da vida, a importância do mundo de repente resumida às paredes do quarto onde a criança se move, aprende a interagir com o cenário à sua volta, maravilhada com cheiros e texturas inéditas, e necessitando de uma supervisão indiscriminada enquanto lida com a irresistível tentação de investigar os mistérios convidativos dos perigos da casa.

Mas o interessante em Something in the Room… é que o corpo se torna, em si, matéria sonora. Um corpo grávido e suas transformações imaginados como uma câmara de refrações de frequências somáticas: a respiração e o batimento cardíaco, mas também suas dimensões invisíveis, os espaços ósseos modificados para dar espaço ao feto, as glândulas, músculos e líquidos em uma sincronia circulatória trabalhando a todo vapor.

Nesta realidade amniótica de sons viscerais, também há espaço para investimentos simbólicos que não dizem apenas respeito ao mundo mágico da maternidade, mas sim a realidades dolorosas de um corpo que se transmuta em algo diferente. A capa do trabalho, uma pintura de Christina Quarles intitulada “Wrestling”, nos faz lembrar dos significados da expressão “trabalho de parto”, ou simplesmente “labor” em inglês. A pintura, de cores aquareladas que se misturam umas nas outras, mostra dois corpos que também se interpenetram, sem fronteiras distintas, em algo talvez sexual, talvez violento, exibindo tons carnais como o ocre, o roxo e o esverdeado. A imagem, nada pacífica, parece vinda direto do universo sombrio do Expressionismo Alemão ou de Francis Bacon.

Na faixa “Evening Mood”, o ruído do ultrassom, gravado com o celular, é utilizado como ambiência sonora. Já “Spinning”, exibe um ritmo de batimento cardíaco intermitente e convoluto. A música “Ocean”, por sua vez, constrói uma sensação de imersão profunda, e faz lembrar aquelas gravações de canto de baleias que são usados para meditações, para pegar no sono ou outras práticas ansiolíticas.

E assim, em determinado momento, o corpo de Julia Holter se transforma no arquétipo materno em si, pois parece se transmutar em algo maior, sobre-humano, algo animal, vegetal e mineral também, e quem sabe até celestial. Tal qual o alquimista Jorge Ben, a vislumbrar as engrenagens ocultas que regem o universo, ela canta: “Sun girl / Sun girl / Sun may / Some girl / Sun maze / Some girl”, numa frase que se desconstrói em algo abstrato, evocando assim a característica irredutível de algo que nos une a nível celular: a essência da mesma fonte termal que nos originou.

Loading

Autor:

é músico e escreve sobre arte