Ana Frango Elétrico e milhares de maneiras de se divertir

“Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua”, disco lançado hoje (20/10), é uma deslumbrante viagem sonora por flertes, romances, passado e futuro

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Fotos: Hick Duarte

Os dois singles que precederam Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua foram quase perfeitos como aperitivos para o que o terceiro disco de Ana Frango Elétrico, lançado hoje nas plataformas digitais, oferece. “Electric Fish” é irresistivelmente dançante, com graves-martelos, na pressão, pincelando uma atmosfera oitentista, enquanto a voz de Ana surge sedutora, pop. É festa, é pista, é globo espelhado, é flerte. Já “Insista Em Mim” é bela e terna, uma balada romântica jazzeada, com sopros e cordas sutis, mas certeiros. É a beleza do amor, da liberdade, de ir e vir, com pés que viajam (também) descompromissados. Essa membrana estética porosa – na qual passam e vão e vêm e se misturam e se confundem singelezas e arroubos, amor e tesão, precisão e extravagância – se corporifica em MCDGQESS. Mas os singles foram amostras quase perfeitas porque, ainda assim, o novo disco de Ana guarda variadas surpresas envolventes – sem que, entretanto, perca sua personalidade, uma cara muito própria de alguém que, sem dúvida, está entre os nomes mais interessantes da atual música brasileira.

“Acho que nunca me preocupei em ser ou não original. Meus processos de reinvenção vêm do coração e do ouvido”, define Ana. Em quatro anos, o salto estilístico de Little Electric Chicken Heart para Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua é notável – e se trouxermos Mormaço Queima (2018) para a discussão, fica claro que Ana é artista, mesmo aos 25 anos, com fases. Cada projeto carrega uma autonomia, um conceito fechado de colorações, texturas e sabores. Já dá para falar nas “eras” de Ana Frango Elétrico. E em MCDGQESS Ana se aprofunda e ramifica o que já havia demonstrado no explosivo single “Mulher Homem Bicho” – anos 1980, timbres nostálgicos com processamentos futuristas, o rejunte entre o orgânico e o digital. “A cada trabalho sinto que eu quero me reinventar, não quero descobrir algo e me repetir. Quero me redescobrir descobrindo percursos e caminhos sonoros. Sinto vontade de me reinventar e reprocessar, não de me reproduzir”.

No novo disco, Ana dirige, canta, compõe, toca e assina a produção musical – e reúne um time brilhante de músicos e compositores, dos versos aos acordes: Alberto Continentino, Guilherme Lirio, Joca,  Sérgio Machado, Marcelo Costa, Thomas Harres, Thomas Jagoda, Calu, Dora Morelenbaum, Marlon Sette, Diogo Gomes, Gilberto Pereira, Jorge Continentino, Marina Nemesio, Thiago Teixeira, Daniel Albuquerque, Luis Felipe Ferreira, Daniel Silva, Thais Ferreira, Vovô Bebê, Lux Ferreira, Vitor Conduru, Carla Rincon, Pedro Carneiro, Aline Gonçalves, Ivan Scheinvair, Luisa de Castro, Pablo Carvalho, Rodrigo Maré, Sophia Chablau, Rubinho Jacobina e Jonas Sá. Vale celebrar e esmiuçar a ficha técnica dessa produção tão coletiva mobilizada pelo que Ana faz com sua arte, cujo resultado sai em parceria com os selos RISCO (Brasil), Mr Bongo (Inglaterra) e Think! Records (Japão).

Na entrevista abaixo, Ana destrincha o processo de Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua, da produção à escolha do título e fala sobre palavras, amor, cores, pesquisas sonoras e mais.

 

Quais – na sua visão e audição – são as cores e colorações desse novo disco?

Laranja, Verde Neon, Preto.

Desde o lançamento de LECH, passaram-se 4 anos. O que você andou ouvindo nesse período que você considera que entrou como influência no novo disco? O que foi se tornando mais presente na sua playlist de 2019 para cá?

LECH teve uma pesquisa muito voltada a Nora Ney, Johnny Alf, Blossom Dearie, Anita Oday, e coisas mais anos 1950. Referências pré-referências setentistas. Nesse novo álbum, ele passa um pouco sobre minha trajetória no geral. Então passa de Di Melo, Marcos Valle, Cassiano a Curtis Mayfield, Michael Jackson, Dorothy Ashby, Sakamoto, Oby Onioha, Gretchen Parlato, Gorillaz e Kali Uchis.

Em algumas entrevistas, você disse que imaginava LECH como um “churrasco num antiquário”. Quais cenas/eventos/imagens você imagina em Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua?

Imagino flerte, sexo, lap dance, romance, brisa.

Ao mesmo tempo em que existe uma “evolução” de Mormaço Queima para LECH e agora para Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua, sinto que não se trata exatamente ou apenas de um percurso no qual os trabalhos foram ficando “melhores” ou “mais bem acabados”, etc. Eu sinto que são ramificações, Ana Frango Elétrico apresentando novas facetas, descobrindo novas formas de se expressar, de produzir. Sabe quando você vê as fases dos Beatles? As roupas de cada fase, as piras específicas de cada período, a – palavra meio gasta, mas para falar de você e dos seus discos cabe e muito – ESTÉTICA. Você concorda, discorda? (ps: eu consigo imaginar num futuro-não-tão-distante fãs debatendo qual fase é a melhor de Ana Frango Elétrico).

Hahahaha… Amei. Você tocou num ponto importante, que é a estética. Eu sinto que sou artista, trabalho com estética. Não sou cantora, musicista. Então, a cada trabalho sinto que eu quero me reinventar, não quero descobrir algo e me repetir. Quero me redescobrir descobrindo percursos e caminhos sonoros. Sinto vontade de me reinventar e reprocessar, não de me reproduzir.

No gancho da anterior e considerando que há um salto estilístico desse disco para o anterior, você sente uma espécie de pressão para inovar?

Não sinto isso, acho que nunca me preocupei em ser ou não original. Meus processos de reinvenção vêm do coração e do ouvido.

“Nesse disco, teve um processo muito bom de não sentir inseguranças minhas. Eu não ouvia e a cada hora queria mudar radicalmente algo, pelo contrário, sinto que consegui limpar tudo que tinha certeza que queria limpar e saturar o que queria saturar”

Me fala de como/quando/onde veio a ideia para o título do disco? No sentido de buscar essa síntese, na forma de nome, de linha de frente, para sentimentos e entendimentos sobre um amor queer.

O nome foi o que primeiro veio. O disco reflete o nome. Já faz tanto tempo que penso essa frase que nem lembro de onde ela surgiu. Mas sinto que foi num lugar de flerte. Sinto que é uma síntese que na verdade confunde. O título é exclamativo, mas na verdade é sobre dúvida, ir e vir em si. Divergências e convergências dentro de mim.

Como foi para você se expor subjetivamente para falar de amor? Como é Ana Frango Elétrico falando de amor – não só em canções, poesia e arte, mas no dia a dia? Você pensa que esse é o disco em que você mais fala de amor?

Como é um disco que tem outras composições de outros autores, foi um pouco mais fácil interpretar do que de fato redigir. Ana Frango Elétrico falando de amor é bem subjetivo e sinestésico. Mas, nesse disco, em “Insista em Mim”, consegui me abrir mais e falar de uma forma mais direta. O amor está sempre rondando de alguma forma, mas de fato esse disco, por falar de gênero e sexualidade, ele toca diretamente no assunto amor.

A sensação nesse disco é de que os sons não se enquadram em gêneros. Eu senti referências de décadas variadas, de lugares diversos, além de moods imprevisíveis. “Boy Of Stranger Things” é um groovaço, parece um encontro de Marcos Valle e Prince; “Camelo Azul” é cinematográfica, cordas de derreter o coração, parece de um filme dos anos 1950. Enfim, fantástico. Ainda assim, o disco tem um conceito sólido, é coeso. Você tem essa preocupação? De poder viajar, fazer o que quiser, mas manter essa “cara” no repertório?

Muito. Sinto que tenho uma leve obsessão pela estrutura completa do disco, penso uma sonoridade, uma jornada, os começos e fins. Dinâmicas, passagens suaves ou sustos, etc. No Little Electric Chicken Heart, esse som geral foi o fio condutor. Sinto que todas as faixas foram muito atravessadas pelo som do álbum. Já no MCDGESS, tentei deixar isso um pouco mais de lado para pular mais de cabeça do que eu queria de cada fonograma. Mas acho que, de alguma forma, por estar pensando em certos sons e estéticas, o álbum tem esse atravessamento e unidade intrínseca que vai ter a ver com essas pesquisas e vivências musicais.

Falando em cinema, quais são os seus filmes preferidos e, além deles, quais são os últimos – recentes ou não – que fizeram sua cabeça? Ou séries também…

Vou confessar que não sou uma pessoa muito culta na área do cinema. Acho que talvez algum dia me aprofunde mais. Sou bem bocó das bobeiras blockbusters. Mas gosto de ver filme bom, de fato faz bem pra cabeça. Sinto que em algum momento da minha vida ainda vou mergulhar de cabeça nessa arte. As últimas coisas que vi foram Os Cinco Diabos, Close, Bottoms. Vi também recentemente o documentário da Cesária Évora e o documentário do álbum Back to Black, da Amy

Me fala dessa experiência assumindo a produção? Quanto você aprendeu, quanto ainda quer aprender e o que muda, durante a feitura de um disco, estar nesse lugar? Você cantarolava/tocava melodias e harmonias para os músicos? Como foi essa produção/parceria?

Tudo muda. São muitos aprendizados. Como disse em uma das respostas, tenho sempre vontade de me reinventar. E é um aprendizado infinito. Quero muito aprimorar mil coisas, mas também quero muito acessar mil áreas. Falta tempo para tudo que gostaria de fazer no campo das artes no geral. Meu processo de produção tem muito a ver com formas das canções, tonalidades, referências, pesquisa, formas e estruturas. Quem são os protagonistas, o que entra de arranjo, o que falta. Assumo um lugar de engenharia também onde sinto que ela entra num conceito geral do álbum. No caso do MCDGQESS tem esse lance de timbres de caixa, que vão mais do 70s e 90s e aí propor um gate reverb clássico dos anos 80s. Mas quando chamo músicos, eu imagino que deixo todo mundo bem à vontade. Quando chamo um músico, é porque quero o ouvido dele, não o meu. Mas deixo bastante claro os lugares, andamentos, estéticas do que penso para as músicas, como se é synthbass, baixo acústico ou elétrico. Drum machine ou orgânico. Por aí vai. São muitos caminhos e sinto que, dependendo do disco, toco mais ou menos, mudo mais ou não a harmonia, etc.

 “Acho que nunca me preocupei em ser ou não original. Meus processos de reinvenção vêm do coração e do ouvido”.

Todas essas composições são pós-LECH ou você aproveitou coisas mais antigas também?

Tem muitas composições que não são minhas, então acabou que foi tudo pós-LECH, as parcerias e o que é meu. A maior parte das versões que quis regravar foi pré-LECH. Mas acho que é um disco bastante pós-LECH.

Uma curiosidade: quantos e quais instrumentos você toca? E qual é aquele que você tem o sonho de aprender algum dia?

Eu toco piano e guitarra/violão. Tiro som de várias coisas, mas sou pouco nerd/meio vagabunde (acho que bastante por pegar as coisas com facilidade). Tiro um som de flauta e de sax. Teria vontade de sentar a bunda e tocar esses dois instrumentos.

Ainda falando sobre produção: há detalhes incríveis e discretos em cada faixa. Como uma paisagem formada por tintas firmes, mas também pintada por sutilezas. (Eu fico encantado com aquela frasezinha de cordas que surge pontualmente entre 1:48-1:52 em “Insista em Mim”, logo depois que você canta de novo “Eu amo sua voz…” ou a única vez em que você entra com “parara” no coro de “Electric Fish”, nos 3:42). Queria saber como você é, na produção, quanto ao embate precisão X ‘extravagância’. Como é o processo de dizer “chega, agora essa faixa tá finalizada e não vamos colocar mais nada”? E o oposto também: “nessa faixa cabe mais coisa…”?

Amei que você saca esses detalhes. Realmente tenho um apreço por essas miudezas. Essa frase de cordas é uma citação adaptada a Curtis Mayfield. Acho que minha precisão leva muito em conta o sentimento. Talvez o que eu tenho do rock seja um apreço pela emoção. Acredito que é sobre esse balanço mesmo entre a precisão e a extravagância. Nesse disco, teve um processo muito bom de não sentir inseguranças minhas. Eu não ouvia e a cada hora queria mudar radicalmente algo, pelo contrário, sinto que consegui limpar tudo que tinha certeza que queria limpar e saturar o que queria saturar. Se as cordas estão altas em uma faixa, as guitarras baixas, o bumbo alto, tudo é porque eu quis que tivesse. Não teve dúvida nem passagem de outras coisas.

“Sinto que sou artista, trabalho com estética. Não sou cantora, musicista”

Você tem um cuidado, uma habilidade afiada e autêntica com as palavras, tanto com a semântica quanto com o ritmo e o efeito poético – seja nas canções ou em Escoliose – Paralelismo Miúdo. Quais são suas palavras preferidas da língua portuguesa? Substantivos, adjetivos, verbos, advérbios…

Eu amo adjetivos. Adorei essas perguntas sobre língua e dá para ver que você entendeu minha pesquisa sonora em relação às palavras. Talvez daí também venha um apreço forte pelos títulos.

Ana, existem palavras que eu considero perfeitas para o que elas significam (empapuçado, sovaco, saudade, caspa…). Você também sente isso com relação a algumas palavras? Quais?

Com certeza. Sinto muito prazer com algumas palavras. Como: crocante, neon, luz, chocante, brabo, chique, chiclete, triste. Nossa língua é muito rica de ritmo e som nas palavras. Acho muito bonito.

Falando em palavras, como é cantar em inglês para você? Desafios e vantagens, conveniências e inconveniências fonéticas… Essa opção pelo inglês partiu de uma tentativa específica de cantar/compor e encontrar alguma barreira no português?

Acho que num lugar de globalidade, de beber muito de sons que são em inglês. E aí acaba ficando com sons de palavras na mente. Tento chegar em lugares que tem mais a ver com o que tô me referenciando. Eu gosto de compor inglês, apesar de sentir que é uma poética que faz mais sentido para mim do que pros outros. Recentemente num livro vi o [Édouard] Glissant falando que em uma coletânea de poesia que ele fez a curadoria, o último poema ele não traduz, como uma ação futura. Ele, que é um filósofo da Martinica, me fez pensar sobre isso. Talvez as coisas em inglês sejam iscas para trazer o ouvinte gringo pro meio de maluquices que virarão ações futuras. Nesse sentido, a música é uma arte privilegiada talvez como a pintura: que mesmo sem entender sua língua você sente alguma coisa com mais profundidade.

Qual é o artista mais, digamos, improvável da sua playlist? Aquele que você diz que escuta e as pessoas se surpreendem?

Não sei, acho que tenho um ouvido bem eclético. Realmente escuto de Chloe x Halle a Carlos Dafé, Madonna a Moondog. Sou capaz de me emocionar com qualquer música. Não sei se alguém chega a se surpreender comigo.

No texto do zine, você fala sobre a “era do algoritmo”. Como é a sua relação com o algoritmo do streaming? Você é do tipo que garimpa por essas plataformas? Que reserva um tempo para sair pesquisando por aí – e “escapar” do algoritmo?

Muito. Sou de uma geração que aprendeu muito com o YouTube, por exemplo. Lembro de ficar os finais de semana ouvindo música e pesquisando através da plataforma. Pelo YouTube, eu conheci Arrigo Barnabé, Charlie Parker, Cannonball Adderley, Eddie Lockjaw. Pelo visto tenho um amor por saxofonistas. Itamar Assumpção, Pharoah Sanders, Airto Moreira, Maceo Parker. Ainda aprendo muito com a internet e procuro sempre fuçar mais.

Para além de ter visto muitas vídeo artes e work in progress do Calder, Jan Svankmajer, Norman McLaren, etc.

“Quando chamo um músico [para um disco], é porque quero o ouvido dele, não o meu”

Você é um nome prestigiadíssimo e muito celebrado na atualidade. Do Brasil, do underground ao mainstream, Grammy, da mídia nacional ao Fantano. Como você lida com elogios, tanto da crítica quanto do público? Qual é sua reação (interna e externa) quando alguém chega e te diz: “Você é FODA”?

Eu gosto, mas também sou muito crítica comigo mesma. Então, sempre tento me analisar, estudar e crescer no que estou fazendo, independente do que os outros achem. Acho que tem uma escada da idade em que agora eu não posso mais fazer as coisas do mesmo jeito que fazia com 18 anos, senão fica cafona, fica bobo. Tenho vontade de me aprimorar e me sentir satisfeita com meu próprio trabalho. Sempre independente do que o outro pensa ou acha que eu devo fazer.

Tem uma entrevista em que você diz que, entre seus amigos, existe a piada de que você é “o mainstream do underground e o underground do mainstream”. Onde você quer chegar com Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua?

Mais pro underground do que mainstream.

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