Resenhas

Lil Yachty – Let’s Start Here.

Novo disco do americano troca o trap jovial e intencionalmente caricato por investida em rock psicodélico, soul e doses de funk

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Ano: 2023
Selo: Concrete/Motown/Quality Control
# Faixas: 14
Estilos: Rock Psicodélico, Indie, Soul, Pop Psicodélico
Duração: 57'
Produção: Jake Portrait, Jam City, Justin Raisen, Lil Yachty, Magdalena Bay, Patrick Wimberly, SadPony, Teo Halm

Lil Yachty mudou o percurso e foi de um trap jovial e intencionalmente caricato para uma investida por rock psicodélico, soul e doses de funk, na qual chega acompanhado de um time antenado e confortável com a aventura: Jake Portrait (Unknown Mortal Orchestra), Patrick Wimberly (Charlift), Benjamin Goldwasser (MGMT), Justin Raisen (produtor cujo currículo vai de Bowie e Lizzo a Yves Tumor e Charli XCX), além de nomes como Mac DeMarco, Magdalena Bay e Alex G, estão creditados na produção/composição do disco. Juntar uma equipe como essa, que orbita destacadamente por uma atmosfera indie/hipster, demonstra que Let’s Start Here. não é exatamente uma viagem experimental-improvisada, mas, sim, um projeto que chega com desejos e alvos bem definidos. Inclusive, durante um evento surpresa de audição do disco, Yachty disse: “Eu realmente queria ser levado a sério como artista, não apenas um mumble rapper de SoundCloud”. Uma resenha não muito elogiosa da Pitchfork trouxe a frase como gancho para um bom debate, levantado por Alphonse Pierre, a respeito dessa espécie de “validação” almejada por alguns rappers, segundo Pierre, quando eles “trocam drum loops por guitarras, rimas por canto, ad-libs por backing vocals e convocam uma brigada de produtores brancos”. Pierre elabora: “O que há de amargo na declaração de Yachty não é a ideia de que ele quer ser levado a sério como artista, mas a questão é por quem ele quer ser levado a sério”. Logo que a resenha de nota 6 saiu, o rapper tuitou “Lol pitchfork is so washed up” (uma gíria para se referir a algo decadente, ultrapassado).

Mas, independentemente do que se passa na cabeça de um músico antes de ele soltar um trabalho no mundo, o que temos de produto final, nesse caso, prevalece. Há óbvios cacoetes de um indie psicodélico que marcou a última década – especialmente capitaneado pelo Tame Impala –, mas despontam também referências a uma linhagem da música negra americana que flertou com a psicodelia, o rock e caprichava em cores cinemáticas pintando as harmonias, de Funkadelic às trilhas da Blaxploitation. O cruzamento desses dois caminhos torna a audição de Let’s Start Here instigante: é difícil prever o que vai vir a seguir e você pode esbarrar tanto em um épico-lisérgico-pink-floydiano, em um ótimo-pop-soul-dançante ou num indie-psicodélico-genérico-mas-não-necessariamente-ruim.

O repertório começa com as guitarras crocantes à la Gilmour em “the BLACK seminole.”, com direito a solos e ambientação encorpada. Enquanto isso, Lil Yachty canta sutil e espaçadamente, mas com intenção e versos de um poderoso cartão de visita – ou um convite de inauguração. O título e a letra fazem referência aos Afro-Seminoles, população formada por escravos fugitivos que uniram forças com os índios Seminole, entre 1700 e 1850, onde atualmente ficam a Flórida e Oklahoma. Os ecos floydianos percorrem toda a faixa – ao final, inclusive, Diana Gordon vocaliza cheia de energia, como Clare Torry em “The Great Gig In The Sky”. A neo psicodelia aparece principalmente em “the ride ~ ”, “sHouLd i B?’ e “THE zone ~”, de guitarras com reverb, além de barulhinhos sintetizados, baterias empoeiradas e Yachty pincelando falsetes autotunados. É interessante como o rapper soa à vontade ao explorar essas melodias, encarnando uma face mais “crooner”. Embora nem sempre com tutano sobrando, ele resguarda um swag, um je ne sais quoi, que leva os versos a lugares (e andamentos) imprevisíveis e tortos – como, inclusive, ele faz em traps como “Minnesota” ou a mais recente (e viralizada no Tik Tok) “Poland”. As investidas mais groove surgem em “running out of time” (produzida pelo Magdalena Bay) e a contagiante disco-funk “drive ME crazy!”, com Diana Gordon brilhando, Yachty carismático e refrão certeiro, ainda que cantado apenas uma vez. “pRETTy”, com letra sarcasticamente narcisista, parece algo que o Miguel dos primeiros discos faria; e a romântica “sAy sOMETHINg” chega com uma cama sonora bem oitentista, com um pé no dream pop de Cocteau Twins misturado a alguns toques de Kate Bush. Ainda há espaço para a fantasmagórica e epopeica “REACH THE SUNSHINE”, com participação de Daniel Caesar e uma atmosfera meio onírica, meio esquisita, meio thomyorkeana.

Let’s Start Here apresenta uma fusão de gêneros e propostas que impressiona. E, entre exageros e sutilezas, constrói uma escuta sedutora que se sustenta pelo seu repertório, mas que, irresistivelmente, ganha uma magia, um tempero, uma curiosidade por conta de quem está à frente do disco. Daqueles álbuns que acompanhados de um contexto se tornam maiores e mais interessantes, mas que talvez se você mostrar para um fã de rock psicodélico lato sensu ele não seja exatamente enfeitiçado, mas goste de algumas coisas, enquanto repele outras – talvez trejeitos e marcadores do rap. E algo semelhante pode acontecer com algum fã de Lil Yachty que encontre em Let’s Start Here. uma produção formatada e ergonômica demais. Essas especulações se relacionam também com a questão levantada por Alphonse Pierre.

Afinal por quem Lil Yachty quer ser levado a sério com Let’s Start Here e essa curva acentuada? Talvez o público de festivais como Glastonbury/Primavera/Lollapalooza? Críticas da Pitchfork? Grammy? Anthony Fantano? Regis Tadeu? Talvez nenhum desses especificamente, mas um pouquinho de todos, além de muitos outros. A frase de Lil Yachty é efeito de uma percepção de que o rap é um gênero “menor” na opinião de uma imaginária sala de estar – que compreende fatias de crítica/público/premiações – onde pretensos sabichões discutem o que merece ou não entrar no cânone do pop mundial. Representantes de um pensamento retrógrado e elitista que durante anos escanteou o rap em detrimento de uma suposta “música de verdade”. Ao longo da última década, rappers, como um forasteiro que não se pode mais ignorar, até derrubaram algumas dessas portas com os dois pés, mas, ao mesmo tempo, no plano geral, não é tão comum vermos projetos de hip hop sendo celebrados em um nível canônico – a não ser xodós como Kanye e Kendrick, os quais, na cabeça dessa sala de estar, já “dão conta” de contemplar o inescapável  hip hop. Um prêmio de consolação que mais quer dizer algo do que efetivamente diz. Além disso, um disco de hip hop venceu álbum do ano no Grammy apenas uma vez, em 2004, com Speakerboxxx/The Love Below, do Outkast. (Dá para discutir se The Miseducation Of Lauryn Hill (1998) é rap ou R&B, mas, de qualquer forma, foram apenas as duas ocasiões). Nesse meio tempo, Taylor Swift levou três vezes, e Adele, duas.

Não obstante a crítica da Pitchfork e ­a discussão levantada por Pierre, Let’s Start Here vem sendo, sim, celebrado como um grande lançamento desse início de ano e acumula nota 76 no Metacritic, a maior da carreira de Lil Yachty. Demonstra uma força criativa que nos atiça a seguir acompanhando novos projetos do artista, além de nos mostrar mais uma vez rappers repentinamente se aventurando por outros gêneros e realizando bons trabalhos, como já havia feito, por exemplo, Childish Gambino, em Awaken My Love!. Em perspectiva, ao mesmo tempo, nos faz pensar em possibilidades e disputas para que o rap seja reconhecido e laureado, também, por qualidades fundamentais e características elementares. Desvendar um verso, apreciar um flow interessante, uma entrega carismática, um sample criativo, um beat e suas ideias e seus drops, compreender as personas dos MCs, suas idiossincrasias, seu estilo, das ad-libs aos trejeitos – e, usando a expressão de Yachty, “levar a sério” cada detalhe e componente do hip hop e suas tantas ramificações, elevando-o ao status cultural que lhe cabe há muito, muito tempo. Mas Lil Yachty, obviamente, pode e deve fazer o que bem entende e, aqui, faz muito bem. Reciclar referências variadas – e até “distantes” – e manejá-las a partir de uma linguagem pop atual, descolada e afável é bastante comum. O Harry Styles leva até Grammy de Álbum do Ano fazendo isso, pô.

Conversei bastante com o João, nosso especialista em Assuntos Rap, sobre o Let’s Start Here. E havia um tempo que um lançamento não rendia tanto papo bom sobre música, hip hop, validações da indústria, produção e gentrificação, expectativas do mercado… Espero que isso possa ser o bastante para que Let’s Start Here. mereça seus ouvidos – e aí você decide se os seus aplausos também.

(Let’s Start Here: ““drive ME crazy!”)

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ARTISTA: Lil Yachty