“Respeito quem pensa diferente, mas acho que um artista com mais de cem mil visitas mensais de seguidores, como temos na nossa página no Spotify, tem uma responsabilidade política”. Este é Fred Zeroquatro, líder do grupo Mundo Livre S/A, dando a pista sobre como pensa sua banda e seu papel no mundo. Como ele mesmo disse, há quem discorde deste papel político, mas talvez essa hipotética pessoa não consiga ver o termo longe de sua conotação partidária, porque fazemos política o tempo todo. Os fãs do grupo recifense, um dos pilares do Manguebeat, sabem disso e esperam tal postura de Zeroquatro e seus rapazes. Podemos dizer que esse engajamento pouco ou nada mudou ao longo da extensa carreira da banda e não é diferente neste ótimo A Dança dos Não Famosos.
Além da verve incendiária, a parte musical precisa ser ressaltada. Não por coincidência, A Dança… é uma espécie de primo mais novo do incensado terceiro trabalho do grupo, Carnaval Na Obra, que completa 20 anos em 2018 e que vai ser revisitado na íntegra em concertos vindouros. A diversidade é o ponto de interseção entre os trabalhos, com a vantagem de que este novo disco apresenta um Mundo Livre muito mais experiente e senhor de si. As referências do mangue foram assimiladas como parte indissociável da música produzida pelo grupo e não são tão percussivas como da outra formação-alicerce do estilo, Nação Zumbi. Na receita de Zeroquatro há muita psicodelia, informação, levadas dançantes e um inesperado – e belíssimo – aceno a David Bowie e alguns usos malandríssimos de sampler, especialmente em trechos de discursos políticos.
A política na obra do Mundo Livre S/A é abordada de forma muito criativa. Veja, por exemplo, Eletrochoque de Gestão, que abre com uma fala de Michel Temerm devidamente distorcida, dizendo que não vai renunciar. Em seguida entra a letra com o verso “Marcela, solicite ao comissário, Nutella pra benzer o pão. Sossegue, venha ler nosso evangelho, louve a boa fé do eletrochoque de gestão”. Claro que a referência é à crueldade com que o termo “choque de gestão” é usado para se atribuir a cortes em programas sociais e medidas que vão prejudicar as camadas mais pobres da população. O uso de vocabulário elegante e próprio de empreendedores, devidamente desconstruído e inserido numa lógica poética própria, dá ao grupo total controle sobre uma narrativa amalucada e “meta-política”, onde tudo cabe. A partir daí, o mundo do Mundo Livre é uma porta aberta ao ouvinte. Outra canção cortante, Tóxico, fala sobre sexo, amor e a confusão entre ambos os termos e seus efeitos nas pessoas, com naturalidade e espontaneidade pouco vistas: “quero um novo beijo, espesso e concentrado, com pedaços de fruta e nutrição floral, que reidrate o couro e revigore o brilho facial”.
Mais adiante a política retorna como ironia bem vinda, na maravilhosa Meu Nome Está No Topo da Sagrada Planilha, com outro verso inegável, “louvado seja o juiz e a virgem santa que o pariu”. Aqui Zeroquatro mistura religião distorcida, manifestações políticas de rua, descaso de autoridades e uma duvidosa presença no “topo da sagrada planilha”, aludindo à corrupção. Outra canção, O Passo do Sangue: Na Vidraça, traz um trecho da entrevista de Leonel Brizola a Jô Soares, na qual o ex-governador do Rio fala sobre o mau uso de imagens sobre os arrastões na Praia de Ipanema no início dos anos 1990, questionando o uso ético da concessão televisiva, comparando-a, numa de suas frases típicas, a uma concessão de ônibus, na qual o motorista não pode se negar a prestar serviço a todos. Bailei de Calção Um Zero a Mais relembra o ouvinte do apreço da banda por Jorge Ben e exibe um vigor jovemguardista raríssimo na obra do grupo, enquanto a belíssima Special Manguechild, em homenagem a Vitor, filho de Zeroquatro, é uma balada psicodélica doce e amorosa, com ascendência inequivocamente bowieana.
A Dança dos Não Famosos é um trabalho intencionalmente caótico, totalmente sintonizado com os nossos tempos. É estilhaçado, violento, necessário sem abrir mão da musicalidade, do acabamento e da produção. Zeroquatro se confirma como um dos grandes letristas de sua geração – um clube tristemente com poucos participantes – e faz deste disco um item necessário para compreensão do Brasil de hoje. Para o bem e para o mal.
(A Dança dos Não Famosos em uma música: O Passo do Sangue: Na Vidraça)