Resenhas

New Broadway Cast of Merrily We Roll Along – Merrily We Roll Along

Com elenco estrelado, remake do musical de 1981 prova que o tempo e uma boa revisão podem transformar um ‘flop’ em um hit

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Ano: 2023
Selo: Sony Music Masterworks
# Faixas: 27
Estilos: Broadway
Duração: 79'
Produção: Sonia Friedman, David Babani e Patrick Catullo

NOVA YORK – Em algum momento da vida, você já deve ter deixado um amigo para trás. Essas amizades que o tempo engole são o tema de Merrily We Roll Along, musical do genial Stephen Sondheim – responsável por outros grandes espetáculos como West Side Story (1957) e Sweeney Todd (1979) –, que, depois de 43 anos de sua estreia, volta aos palcos da Broadway, em Nova York – desta vez, no Teatro Hudson. Com um forte elenco que conta com atores experientes no trio de protagonistas (Jonathan Groff, Lindsay Mendez e Daniel Radcliffe), o remake da peça que foi um completo fracasso nos anos 1980 – ficando em cartaz por apenas 16 apresentações até ser cancelada – prova que, com alguns ajustes inteligentes, o brilho das composições de seu criador reluz.

Fato é que, na primeira versão, em 1981, uma série de escolhas erradas impediram Merrily We Roll Along de receber os aplausos que hoje explodem entre um número e outro e se arrastam por longos minutos ao final do show. Entre elas, está a de trabalhar com um casting muito jovem em uma peça cuja cronologia ocorre de trás para frente: os personagens começam mais velhos e vamos voltando no tempo junto com eles por durante 20 anos – período em que o compositor Franklin Shepherd (na versão atual, Jonathan Groff) conhece o escritor e letrista Charley Kringas (Daniel Radcliffe) e a jornalista e crítica de teatro Mary Flynn (Lindsay Mendez). Havia um estranhamento entre a falta de rugas dos atores e a ideia de que, logo de cara, eles já têm mais de 40 anos de idade. Some a esse um novo estranhamento: este da história ser contada do final para o começo. Muita gente saiu do Teatro Alvin sem entender absolutamente nada do roteiro escrito por George Furth baseado na peça de mesmo nome datada de 1934 e assinada por George S. Kaufman e Moss Hart. Como se não bastasse, Merrily We Roll Along cobrava preços de Broadway, mas não entregava figurinos exuberantes, cenários apoteóticos e números de dança hiperbólicos. É uma peça que depende fundamentalmente da nitidez de seu texto – fator absolutamente mal conduzido na primeira oportunidade do musical nos palcos. Não à toa, o flop.

Por que, então, em 2023, a peça é um sucesso? Bom, primeiro, a escolha de um elenco adequado com mais de 30 (quase 40) anos de idade, já ajuda bastante. Depois, uma audiência que já sabe do tema, do intuito e da cronologia inversa do musical. Por fim, uma execução elegante das palavras e notas escritas por Sondheim garantiu a eles – em pouco mais de 30 dias em cartaz – a gravação de um LP com as músicas do show para eternizar esta já consagrada versão de Merrily. Vale dizer, no New York Times, o espetáculo é “A escolha dos críticos”; no Washington Post, Merrily alcançou a excelência; no Guardian, a peça arrematou quatro das cinco possíveis estrelas de avaliação.

Isso porque, sem dúvida, Merrily fala do “adeus” tangibilizando as suas vicissitudes ao invés de entendê-lo pura e simplesmente como o fim abrupto de algo, como uma morte súbita. Além disso, no decorrer das canções do musical – ainda que não nos aprofundemos tão gravemente na psique de cada um dos três protagonistas –, o verdadeiro protagonista é a morte de um sentimento, de uma relação, que se dá lentamente através da passagem do tempo. A esperteza de contar a história de trás para a frente está, na verdade, no impulso que essa escolha dá para o argumento poético de que, no fundo, viver intensamente é também morrer aos poucos.

Explico: tudo começa em “That Frank”, faixa que narra uma festa cujo anfitrião é um Franklin Shepherd já na crista do sucesso – os dias de Broadway foram deixados para trás e ele agora é um muito bem-sucedido produtor hollywoodiano. No agito, sua amiga Mary Flynn exagera no álcool e deixa escapar – em alto e bom som – o seu rancor de quem foi abandonada em outro momento da vida do figurão interpretado por Groff. Anos antes, em uma entrevista para a NBC, Charley Kringas já tinha tido o seu rompimento com Shepherd. Ao vivo na televisão, ele canta “Frank Shepherd Inc.” – comparando o colega a uma máquina de fazer dinheiro que deixou no passado o seu amor pela arte e, por consequência, o elo que os unia (um dos momentos de aplauso mais veemente da peça devido à performance enérgica, cômica e irritada de Daniel Radcliffe). Mais anos antes, na lancinante primeira entrada da canção “Not a Day Goes By”, Shepherd ouve de sua ex-mulher que ela deseja terminar seus dias sem nunca mais olhar para os seus olhos – o que desemboca no final do primeiro ato, a bem-humorada, mas cortante, “Now You Know”. Música que indaga: se o que já se perdeu, perdido está, e agora? O que sobra?

O segundo ato, melancolicamente – mas sem cair em pieguismos – tenta responder a pergunta. Sobra a alegria compartilhada de ter visto um projeto criado em grupo tomar corpo e fazer sucesso (“It’s a hit!”), sobra a memória de uma parceria em que os membros se cobram mutuamente de seus respectivos amadurecimentos e da tomada das rédeas de seus desejos (“Growing up”), sobra a lembrança da inocência do primeiro projeto tosco, mas feito com uma dedicação quase exclusivamente própria da fase dos 20 e poucos anos (“Bobby and Jackie and Jack”), sobra o tesão de furar a bolha ao escalar os degraus do sucesso na cidade grande (“The Blob”), sobra ter sonhado juntos, ter olhado para o céu juntos e ter desenhado em mente um futuro que não se concretiza, mas que – não tivesse o sonho – sequer qualquer futuro seria concretizado (“Our Time”). De modo que, ao final do musical, o adeus parece menos catastrófico – ele continua triste, mas a visão proposta por Sondheim é a de que o que se foi, também existiu. E o que existiu, merece ser validado – ainda que só no exercício da memória.

Para isso, Sondheim respeita o poder da palavra. Em vida (ele faleceu em 2021), o compositor da peça já disse que preferia atores que cantam do que cantores que atuam. Merrily é prova indelével desta declaração. As canções não exigem esforços vocais absurdos de seu elenco – elas exigem complexidade emocional e uma entrega absoluta a um exercício de humildade que pouco se vê em espetáculos broadwayrescos: o de entender que não se trata do seu brilho individual, da imponência de um personagem que será louvado, mas sim de dar corpo ou de tentar materializar algo que, embora tenha nome, parece não ter definição estratificada. Merrily desliza sobre o que pode ser o “adeus” e, ao não fechá-lo em uma caixa, chega muito perto de revelar a sua essência. O disco, portanto, é uma celebração dessa tentativa – gravada para ser ouvida quando o esquecimento impulsionado pelo rancor tenta se impor.

(Merrily We Roll Along em uma faixa: “Now You Know”)

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