A música é uma linguagem e, portanto, um recorte da realidade. Ao mesmo tempo em que é uma representação/percepção daquilo que existe, também é uma distorção do factual. Uma distorção que, ainda que não encontre um equivalente na realidade, não deixa de ter um sentido – um sentido que, por ignorar as regras do mundo real, abre uma chave inédita de interpretação. A música é capaz de ressignifcar o mundo. E temos essa percepção ao escutar a obra de Rico Jorge.
O produtor e compositor mineiro se destaca por uma pesquisa sonora marcada pela dinâmica e a intensa experimentação. Seu EP Rascunhos e Resenhas Vol. 1 (2022) trouxe à tona um ouvido crítico sobre a música brasileira, principalmente na maneira como trabalhava referências da MPB e reestruturações rítmicas a partir de edits. Foi um trabalho essencial para compreender a forma de criação de Rico – recusando os gêneros musicais enquanto estruturas rígidas e compreendendo como cada um poderia contribuir para a criação de novas possibilidades sonoras. A própria nomenclatura do trabalho já diz respeito a este pensar “desestruturante” do produtor, que coloca os rascunhos não como forma embrionária de pensar seus sons, mas a própria arte final. Agora, um ano depois, Rico traz mais uma amostra de seu pensamento de destruição e reconstrução – um que recorta a frágil categorização de gêneros em prol de uma linguagem que consiga explicar (ou minimamente lançar luz) sobre a vida. Uma vida simples, porém de ideias complexas.
É isso que esta em jogo em seu novo disco. Vida Simples, Ideias Complexas é um trabalho experimental por excelência, mas que não procura ficar apenas no campo da abstração. Ele traz uma música complexa, mas que parte de lugares conhecidos da MPB (samba, pop, bossa nova, funk) e da música eletrônica (dub, UK, grime) para construir um universo que brinca com a dialética estereótipo X experimental. Uma contradição aparente, que funciona ao longo das 12 faixas do repertório. É um trabalho cheio de recortes e camadas, que tenta encontrar pontos de identificação da vivência humana a partir de diferentes esferas – política, existencial, social, criativa. Rico busca dar vazão a diferentes interações entre o pensamento humano e a realidade material (ou sócio-política) por meio de uma linguagem sonora autêntica – tarefa desafiadora e transformadora.
Para mergulhar nestas ideias complexas, Rico propõe uma clássica “INTRO” que mistura diálogo, distorção, percussão e reverb – mas que nos introduz agressivamente ao caos. Com estrutura de ritmo funk e acordes quentes da bossa, “SEM VER” é um misto agridoce de tensão e relaxamento simultâneos; já “TDAH+” reúne influências de jazz, UK e drum n bass, simulando o frenesi da hiperatividade, mas também criando um campo no qual os pensamentos tentam acompanhar a alta velocidade da vida. “DESEJO” é ágil em suas melodias, ao mesmo tempo em que entrecortada pelo suingue das percussões acústicas e eletrônicas. “OBCECADO DIGTAL” sugere uma viagem pelas relações mediadas pelo eletrônico – um misto de textura sonora noise, mas que nos conduz por um fio de melodia sutil. Depois de uma odisseia de sonoridades, “QUEM É VC” encerra o disco com esta pergunta fundamental do existencialismo – uma tentativa de reunir pedaços nossos cortados e deixados para trás ao longo do disco.
Vida Simples, Ideias Complexas apresenta um recorte da vida real que não tem um equivalente direto no mundo – mas ainda assim consegue explicá-lo. A partir de uma distorção da realidade e de gêneros musicais diversos, Rico lança luz sobre a dificuldade de compreender o mundo. Afinal, por mais simples que a vida possa parecer, ela é composta de uma complexidade ímpar. Uma complexidade que exige toda a sensibilidade e a ousadia de um produtor como Rico para ser elaborada por meio de som.
(Vida Simples, Ideias Complexas em uma faixa: “TDAH+”)
