Resenhas

Waxahatchee – Tigers Blood

Katie Crutchfield dá adeus ao cinismo do indie rock e abraça de vez o country – ampliando e incrementando o que havia começado em “Saint Cloud” (2020)

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Ano: 2024
Selo: Anti-
# Faixas: 12
Estilos: Country, Folk
Duração: 42'
Produção: Brad Cook

Em algum momento da última década, enquanto muita gente estava ocupada com a autópsia do indie rock (apenas um spin-off da interminável autópsia do rock como um todo), boa parte de seus sinais vitais estava concentrada no quarto de jovens garotas. Nomes como Phoebe Bridgers, Soccer Mommy, Snail Mail, Alvvays, Vagabon e Courtney Barnett surgiam toda semana, cada uma conseguindo desenvolver seu som em cima de uma base formada por Cat Power, Sharon Van Etten, Fiona Apple, PJ Harvey, Kim Gordon, Karen O e outras.

Com o tempo e a consolidação da maior parte desses nomes (Phoebe Bridgers, por exemplo, cruzando de vez a fronteira do mainstream), ficou muito claro que essa abordagem mais pessoal e com temáticas que fugiam de alguns clichês do rockstar de outrora foi um dos movimentos mais interessantes e relevantes na música independente deste início de século. Dentre todos esses nomes — e de vários outros fora desse recorte —, porém, nenhuma letrista capturou mais minha atenção do que Katie Crutchfield como Waxahatchee.

Em 2020, durante a pandemia, a cantora e compositora conseguiu com seu quinto álbum de estúdio, Saint Cloud, multiplicar seu público com um disco esperançoso, apesar de gerado em um momento de instabilidade. Katie havia decidido parar de consumir bebidas alcoólicas alguns anos antes e concentrou todas as suas incertezas no disco, a primeira colaboração com seu amigo Brad Cook (Bon Iver, The War On Drugs) na produção. Esse reencontro com a sobriedade veio também por meio de um retorno às suas raízes do Alabama substituindo o indie rock que a inseriu no zeitgeist da última década pelo country de sua ‘ídola’ Lucinda Williams, que ecoa por todo o trabalho — o que curiosamente pode inseri-la ainda em um novo zeitgeist, só nos resta acompanhar.

A aposta nessa mudança foi dobrada em Tigers Blood, que conta novamente com Cook por trás dos panos trazendo peso e potência para as produções. Katie largou o Brooklyn, local que há alguns anos parecia obrigatório para quem quisesse despontar na cena, e foi morar em Kansas City, no estado do Missouri, com seu parceiro, o também músico Kevin Morby. Junto com o indie rock, deixou por lá toda a ironia e as inseguranças que acompanham o clichê de uma jovem artista alinhada com seu tempo. Tigers Blood é leve, sincero e direto ao ponto de uma forma muito difícil de encontrar na música tão autoconsciente feita hoje em dia.

Meu primeiro contato com o disco veio através do single “Right Back to It”, lançado há alguns meses. Em um clipe sem firulas gravado em um lago cinematográfico do Texas, Katie canta descalça sentada em um barco dirigido por MJ Lenderman, jovem músico responsável por um dos meus álbuns preferidos de 2022 e integrante da banda Wednesday. Nesta faixa, Lenderman — que toca guitarra e canta em outros momentos do disco — compõe com ela um dos duetos mais bonitos que ouvi em muito tempo. Uma daquelas parcerias mágicas que ficam na fronteira entre o perfeito e o esquisito, receita de um clássico atemporal. Se há pouco ou quase nada de indie rock nesta faixa, ela apresenta muito bem o que viria alguns meses depois nas outras 11 que completam o álbum.

Ele começa com “3 Sisters”, uma faixa de abertura ideal que inicia contida, com poucos elementos, e continua em um crescente moldado para destacar a diversidade vocal de Katie. De baladas delicadas a refrãos poderosos, passando por momentos divertidos, como na viciante “Ice Cold”, em que ela soa como uma veterana do country com 50 anos de carreira, o projeto atinge seu ápice vocal — algo que parecia improvável após sua apresentação poderosa em Saint Cloud quatro anos atrás. Muitos ingredientes podem formar uma obra de sucesso, mas a combinação entre voz e boas composições talvez seja a mais unânime. Neste lançamento, a já citada performance vocal acompanha sua poesia hermética, que não entrega uma especificidade temática e pode se encaixar no sentimento que o ouvinte quiser.

Um tema novo em Tigers Blood são os conflitos trazidos pela não tradicional profissão de artista. Ao mesmo tempo em que há uma cobrança por sinceridade e transparência sentimental, não haveria empatia e identificação caso Katie decidisse ser totalmente direta e contar sobre os dilemas específicos de uma vida em que se roda o mundo dando entrevistas, aparecendo em programas de televisão e tocando para milhares de pessoas que pagam para ouvir suas confissões mais íntimas. A solução encontrada foi manter a sinceridade em letras crípticas envoltas em arranjos pop acessíveis, formando uma contradição que instiga nossa curiosidade.

Não é sempre que um artista consegue traduzir em sua música o que fala em seus discursos. Em 2024, Katie não cansa de demonstrar em entrevistas seu momento mais curioso e aberto em relação ao fazer artístico. Em sua newsletter, escreveu recentemente com muita empolgação sobre a experiência, em suas palavras “incrível”, de acompanhar a sobrinha em um show de Olivia Rodrigo com direito a muitas afirmações sobre a força do talento da garota e seu futuro brilhante. A balada “Crimes of the Heart”, caso não entrasse no disco, poderia facilmente ser oferecida como composição para o próximo álbum de Taylor Swift (que ultimamente tem frequentado muito sua cidade de Kansas City).

Em Tigers Blood, sai de cena o cinismo que já existiu no indie rock em relação à música pop e ao sucesso, e entra de vez o country, que muitas vezes cambaleia entre o sublime e o piegas, mas, com sinceridade, consegue convencer e dar corpo a um dos meus discos favoritos do ano até o momento.

(Tigers Blood em uma faixa: “Right Back to It”)

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ARTISTA: Waxahatchee

Autor:

Nerd de música e fundador do Monkeybuzz.