O Lado B de Luedji Luna

“Me desnudar a ponto de me permitir ser boba, ser platônica. É emocionante perceber as costuras desses momentos”; com canções inéditas e compostas ao longo de mais de 15 anos, a versão deluxe do excelente “Bom Mesmo É Estar Debaixo D’Água” explora diferentes faces e fases da artista baiana

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Fotos: Henrique Falci

Quem tem o hábito da escrita já esbarrou ou vai esbarrar com um bloquinho repleto de anotações ou frases desconexas — mas que um dia já fizeram sentido. Foi em um desses registros que Luedji Luna reencontrou palavras e frases que precisavam sair ao mundo, ímpeto que resultou na versão deluxe de Bom Mesmo É Estar Debaixo D’água, desde 25 de novembro nas plataformas digitais.

“As canções já foram vividas, viraram palavra cantada, já escolhi o que faz e o que não faz mais sentido, senti o gosto da saudade em cada nota. É história que não acaba mais, tem até nome para isso, mas prefiro chamar de amor”, escreveu em uma publicação no Instagram, posada ao lado de um caderno preenchido por canetas Bic. O novo disco apresenta 10 faixas inéditas, escritas ao longo de sua vida, e em parceria com os compositores já conhecidos em seus trabalhos anteriores, como Marissol Mwaba, François Muleka e Ravi Landim.

“É uma Luedji diferente da de hoje, mas ainda sou eu”, avalia. A afirmação da cantora vem logo após a reflexão sobre o processo de revistar as canções que escreveu. “Tem sido muito emocionante perceber as costuras desses momentos, desse lugar que eu estou como mulher e amada”, acrescenta.

Entre as coisas que aproximam e distanciam os dois trabalhos, no que aconchega é, essencialmente, a temática do disco. Luedji abriu uma segunda camada para falar sobre amor na perspectiva das mulheres negras e convidou Linn da Quebrada, Mayra Andrade, Aza Ndjeri e Winnie Bueno para engrossarem o coro. Juntas, recepcionam os ouvintes com confissões sensíveis sobre o sentimento em “O que é o Amor?”, faixa de abertura do disco.

“É uma Luedji diferente da de hoje, mas ainda sou eu. Tem sido muito emocionante perceber as costuras desses momentos, desse lugar que eu estou como mulher e amada”

Na sequência, em “Salto”, poesia musicada por Ravi Landim, a cantora une forças com o duo charmoso da Baixada do Rio de Janeiro, Yoùn, e se questiona sobre as extremidades do sentimento motor: “O que eu sinto é amor, ou fim do mundo?”. Em “Pele”, terceira faixa do disco, e a mais antiga do projeto, Luedji traz as impressões da menina que foi aos 17 anos quando viveu a experiência do primeiro beijo. A música nunca havia conhecido os aplausos do público, até o momento em que Luedji a apresentou a capella no programa Espelhos, de Lázaro Ramos. “Eu nunca me sentia à vontade de cantar. Eu tinha 17 anos, era uma experiência que considerava boba e que tinha uma letra boba. Para mim, não fazia gravar”, explica.

Mas, depois da insistência do próprio público e da beleza de se redescobrir, a canção ganhou corpo e forma na versão Deluxe. “É isso que a gente aprende na terapia, a criança ainda existe, ela ainda se expressa no presente, então faz sentido mostrar esse passado no presente para as pessoas. Outra versão, tão importante quanto a atual”. Para Luedji, esse foi “o bonito” do trabalho: “Me desnudar a ponto de me permitir ser boba, ser platônica. Foi muito libertador gravar ‘Pele’, e assumir que sim, eu fui uma menina de 17 anos, que já queria ter beijado há muito tempo”.

Ela ainda enfatiza a importância de narrar histórias que, embora sejam únicas e cheias de especificidades, carregam a identificação de outras mulheres negras nos contextos amorosos. “[A música] traz esse tema da solidão, da experiência. Pra mim, foi um grande acontecimento, a ponto de me mobilizar para fazer uma música. Então, acho importante cantar essa canção, falar sobre a história dela, que é, inclusive, a história de muitas meninas negras. E ficou bem bonito, né?”.

“Me desnudar a ponto de me permitir ser boba, ser platônica. Foi muito libertador gravar ‘Pele’ e assumir que sim, eu fui uma menina de 17 anos, que já queria ter beijado há muito tempo”

Ela ainda enfatiza a importância de narrar histórias que, embora sejam únicas e cheias de especificidades, carregam a identificação de outras mulheres negras nos contextos amorosos. “[A música] traz esse tema da solidão, da experiência. Pra mim, foi um grande acontecimento, a ponto de me mobilizar para fazer uma música. Então, acho importante cantar essa canção, falar sobre a história dela, que é, inclusive, a história de muitas meninas negras. E ficou bem bonito, né?”.

A beleza da canção, contudo, não vem só da composição delicada de Luedji, mas também da união pra lá de potente com a cantora e produtora norte-americana Mereba. “Ela agregou maravilhosamente bem”. A canção ainda conta também com a produção do musicista de New Orleans John Key, baterista e produtor do álbum When I Get Home, de  Solange.

Já em relação aos pontos distantes que as duas obras se apresentam, o principal é a decisão estética. Desta vez, Luedji apresenta mais tons do R&B, neo soul e da música eletrônica. A versão Deluxe traz consigo “Bom Mesmo é Estar Debaixo D’água”, “Lençóis” e “Manto da Noite”, três faixas que já apareceram no disco, mas que, agora, foram produzidas e mixadas por Sango, Be.Atrz e Theo Zagrae, respectivamente. Segundo a artista, a aproximação a essas sonoridades se deu pelo próprio chamado da vida. “Tem a ver com os encontros que a música me proporcionou. As viagens internacionais, as pessoas que conheci e produtores que me conectei. Tudo fazia sentido para que eu atendesse essa chamada [de ritmos]”, explica. A artista também conta sobre a felicidade que sentiu quando John Key enviou uma DM no Instagram, pedindo para que eles se encontrassem em estúdio.

“Certamente, [ele] deve ter me conhecido por causa das plataformas que me projetaram internacionalmente” — a artista se refere às recentes aparições no Colours, canal que coleciona 6 milhões de inscritos no YouTube, e no Tiny Desk, point de ouro dos artistas. Não à toa, surgiu a intenção de lançar o disco com maior aproximação ao mercado exterior. “Identifiquei que o meu maior público depois do Brasil é os Estados Unidos. Então, esse disco nasce nessa perspectiva de ampliar esse público”. Para Luedji, embora Bom Mesmo É Estar Debaixo d’Água tenha protagonizado boa parte das principais listas de melhores discos do ano de 2020 e tenha recebido uma indicação ao Grammy Latino de Melhor Álbum de Música Popular Brasileira, essa visibilidade da premiação não a aproximou desse mercado.

“Assim, o Grammy foi uma experiência boa. Mas acho que impactou pouco no Brasil. Eu nem ganhei, mas cantei no evento. Senti que a mídia não deu muito foco pra esse momento da minha carreira”, relata. Ainda que a artista tenha sentido esse descuido, ela enaltece a chegada de outras amigas à premiação, que se destacaram neste ano: “Que bom que a gente pôde ver uma mudança no paradigma, a vitória da Liniker e todas elas celebrando, ter várias amigas negras indicadas”, comemora.

As duas estiveram juntas no Palco Sunset do Rock in Rio deste ano, uma parceria muito esperada. “Banho de Folhas”, carro-chefe de Um Corpo No Mundo (2017), de Luedji, foi trilha desse encontro. “Minha irmã de cor, amiga, parceira, uma das maiores compositoras do Brasil”, exclamou Liniker ao introduzir a cantora no palco.

Com o BMDA Deluxe na mão, a artista não vê a hora de ouvir o público cantarolar as novas canções: “Quero ver em um show, como vai ser”, imagina, extasiada. Pelo foco do trabalho, que conta com a mixagem de Russell Elevado (Erykah Badu, Alicia Keys, Kamasi Washington, D’Angelo e Jay-Z) e masterização de Mike Bozzi (Kendrick Lamar, Childish Gambino e Post Malone), veremos Luedji sobrevoando muito mais territórios, para além do Brasil, e ela já adianta: “Me sinto pronta”.

 

Faixa a Faixa

O Que é o Amor? – A faixa traz a concepção de cada uma das artistas sobre o amor.

Blue — Diz muito sobre concluir uma história, pra iniciar outra. Deixar as agruras da relação anterior e viver o presente.

Salto — Escrevi para uma pessoa pela qual estava tão apaixonada que nem entendia qual sentimento era.

Pele — Beijar na boca foi uma experiência que realmente me mobilizou muito, a ponto de escrever a primeira canção, aos 17 anos.

Tempos Artificiais — É uma música antiga, que fiz em um réveillon no Rio Vermelho, em Salvador, enquanto assistia à queima de fogos. Então lhe veio a frase “fogos de artifício são como estrelas caindo do universo”. É uma música pra quem espera algo da noite, da vida: um amor, um futuro, algo de bom.

Enquanto Durmo — Música feita após um término de namoro, é uma canção que revela o apego que a gente sente logo quando termina uma relação.

Corpo Tempestade — É uma música ótima, que eu fiz pra uma menina que ficou comigo, me levou pra casa dela, dormimos, mas não aconteceu nada além do sono. Fiquei na vontade, como diz a letra.

Metáfora — Uma canção de amor, muito literal, sobre querer escrever para e sobre uma pessoa, mas não achar palavras, com participação especial da grande revelação do drill N.i.N.A.

Sinais — Um house pra tocar nas baladinhas.

3 Marias — Uma canção que fala sobre adultério, sobre se apaixonar por alguém casado.

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ARTISTA: Luedji Luna