Resenhas

black midi – Hellfire

Terceiro disco é o mais estranho, desafiador e recompensador da carreira da banda inglesa

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Ano: 2022
Selo: Rough Trade
# Faixas: 10
Estilos: Rock Experimental, Rock Progressivo
Duração: 38'
Produção: Marta Salogni

Cavalcade foi um dos grandes discos roqueiros de 2021 e alçou o trio inglês black midi ao posto de uma das bandas mais interessantes do gênero a aparecer nos últimos anos. Hellfire não só reforça essa impressão como ainda leva a música do grupo para cantos até então não explorados. Este terceiro disco soa como progressão natural de muitos dos elementos vistos no ano passado, seja o requinte na instrumentação, a qualidade vocal de Geordie Greep ou ainda as extravagâncias e os experimentalismos. É um álbum ainda mais estranho, ainda mais desafiador, ainda mais singular, mas é também o mais recompensador.

Para não entrar numa salada de nomes de estilos, basta dizer que o grupo faz um rock progressivo com tendências ao experimentalismo e neste disco brinca com música de cabaré, jazz, country e flamenco. Mais do que gêneros jogados aqui e ali numa sanha de criar algo bizarro e desafiador, cada um deles é apresentado como elemento narrativo. São as histórias que propulsionam todo o resto – e não o contrário. No final das contas, os arranjos, vocalizações e tudo mais são construídos como ferramentas de storytelling.

E por falar em história, Greep e companhia criaram algumas das narrativas mais cativantes do ano na música. O registro, conceitualmente, apresenta o ouvinte a personagens que atuaram de modo moralmente duvidoso e que de alguma forma flertaram com algo que os levaria para o inferno. A banda não tem inclinações religiosas, mas brinca aqui com o conceito cristão (principalmente nas perguntas bizarras de “27 Questions”) e nos coloca dentro das canções quase como uma A Divina Comédia – em que cada canção nos leva a um círculo diferente desse abismo dantesco.

Para tal, o grupo se utiliza de alguns personagens, como Tristan Bongo, que tem sua trajetória contada em duas músicas (“Welcome to Hell” e “The Race Is About to Begin”). Boa parte das histórias parecem ocorrer durante o começo dos século 20, talvez no período da Primeira Guerra Mundial ou pouco depois, o que transforma os flertes com cabaré, jazz, flamenco em referências no espaço-tempo. Tristan tem parte da sua vida contada aqui, desde o tempo em que era um soldado numa guerra sanguinária até ser mandado embora do exército por não querer matar mais. Após isso, se envolve com corridas de cavalo e vício em apostas – quase como forma de lidar com o stress pós-traumático ocasionado pelas batalhas que participou.

Mesmo uma música que se passa num suposto futuro (“Sugar/Tzu”) narra um evento que tem cara de antigo – no caso, um assassinato que ocorre dentro de uma midiática luta de boxe (a tal luta teria ocorrido no dia 31 de fevereiro de 2163, uma data impossível). A banda ainda conta a história de matador de animais que faz um pacto com o Diabo sem saber (“Dangerous Liaisons”) e um cafetão cristão que se acha salvador das pessoas que ele alicia (“The Defence”). Mesmo o processo de envelhecer (“Hellfire”) é traçado como um caminho, inescapável, para o inferno.

Toda a ideia do registro consegue ser expressa por meio da capa, criada pelos artistas David Rudnick, Maharani Yasmine Putri e Emiel Pennickx. São camadas e mais camadas de texturas e objetos que emolduram no centro duas figuras demoníacas. Ainda assim, a capa desperta fascínio seja por suas cores vibrantes ou pelo senso de movimento, que contribui à narrativa. As músicas do repertório também são assim –  sempre em movimento, sempre coloridas. E sempre sugerindo uma ligação infernal. Esse é um desafio recompensador que certamente eleva o trio a uma das bandas mais inventivas não só da cena inglesa, mas também do cenário do rock mundial.

(Hellfire em uma faixa: “Welcome to Hell”)

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ARTISTA: black midi

Autor:

Apaixonado por música e entusiasta no mundo dos podcasts