Resenhas

Kali Uchis – ORQUÍDEAS

Sem sacrificar a coesão, novo disco da cantora ativa múltiplas possibilidades da música eletrônica e realiza diálogo sólido entre diferentes épocas

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Ano: 2024
Selo: Geffen Records
# Faixas: 14
Estilos: Alt-R&B, Lounge, Reggaeton
Duração: 47'
Produção: Albert Hype, Carter Lang, Cromo X, Dylan Wiggins, El Guincho, FABV, Geeneus, Hector Mazzarri, Jam City, Josh Crocker, Julián Bernal, Kali Uchis, Manuel Lara, outros

Com demandas mercadológicas exigindo lançamentos em menores intervalos de tempo, o termo “era” é cada vez mais irônico. Se antes era possível estruturar uma discografia em agrupamentos estéticos que duravam anos, hoje, as “eras” de uma artista pop se mostram mais voláteis e suscetíveis a mudanças bruscas. Mesmo com a exigência de discos anuais, singles a cada mês e clipes impactantes que caibam em um TikTok, há artistas que conseguem encaixar um cronograma desses sem sacrificar o senso de coesão geral. É praticamente necessária uma habilidade mágica para espremer um período artístico em pequenas doses de tempo – e se há alguma artista pop que conhece profundamente o poder do tempo, essa é Kali Uchis.

De nome em ascensão dentro do vasto Soundcloud a vencedora de Grammy, Kali Uchis manipula o tecido do tempo com tranquilidade – e isso é mais do que uma metáfora. Desde sua mixtape Drunken Babble (2012), ficou evidente que os diferentes recortes de estéticas do passado eram mais do que mero material bruto a ser sampleado em suas composições. Em seu primeiro disco completo, Isolation (2018), a cantora e compositora criou um universo particular e autêntico, a partir de um olhar nostálgico para os anos 1970 e a aproximação das texturas psicodélicas dentro do pop. Mais adiante, com Sin Miedo (del Amor y Otros Demonios) (2020), ela trouxe ainda mais influências da música colombiana – conquistando um público maior sem se render ao revival disco que dominou o começo da nova década. Agora, em seu quarto disco de estúdio, lançado menos de um ano após Red Moon In Venus (2023), Kali Uchis nos mostra que há muito a ser explorado neste diálogo entre diferentes épocas.

ORQUÍDEAS é familiar na medida em que traz tudo aquilo que Kali Uchis é. Os sons psicodélicos, a variedade de ritmos latino-americanos, o inconfundível timbre vocal rouco e místico; todos os elementos estão lá. Porém, mesmo apoiada em pilares conhecidos, ela vai além. É possível identificar seus novos lampejos, mas a verdadeira magia do disco surge na zona híbrida entre as diferentes épocas e influências. São 14 faixas que permeiam diferentes ecos da música eletrônica, mas de forma sutil. Mesmo a batida clássica de reggaeton (mais forte do que em qualquer outro disco) é possuída pelo canto quase ritualístico de Kali, transformando-se em algo único. Os anos 1970 e a psicodelia também se transmutam a partir de timbres menos analógicos, mas fantasmagóricos e nostálgicos.

Cada música traduz um universo particular – em uma essência resultante de diferentes manipulações do tempo. “¿Cómo Así?” cria uma ponte entre um ritmo influenciado pelo swing do miami bass, mas também por um house de vertente mais lounge. Já “Igual Que Un Ángel” nos indica que, apesar de ter se rendido ao disco revival, ela não o fez de maneira supérflua – munida de uma leveza lisérgica que nos atinge de primeira. A percussão sutil de “Diosa” contrasta com a batida reggaeton marcante, sem necessariamente quebrar a sensação etérea e imersiva. O single “Te Mata”, por sua vez, não economiza nos arranjos de cordas envolventes e dramáticos de cumbia da década de 1950/60. Temos também “Tu Corazón Es Mio…”, misto de bolero-sofrência com synthpop incorrigivelmente romântico. Indo totalmente além da sensação vintage dos gravadores de fita, o disco termina com “Dame Beso // Muévete”, uma salsa frenética que não permite que o ouvinte termine a audição do disco sem perder o controle de seus movimentos.

Em ORQUÍDEAS, Kali Uchis propõe diálogos entre house, reggaeton, lounge music, cumbia, salsa e psicodelia – conexões que podem nunca ter existido de fato em outras décadas, mas que aqui nos contagiam de maneira muito íntima. Mesmo com um cronograma insano de lançamento, a artista prova que é possível produzir um senso de novidade sem ter que apelar para cenários completamente novos. É como um sentimento de déjà vu – familiar, mas instigante. Um movimento que apenas uma bruja poderia realizar.

(ORQUÍDEAS em uma faixa: “Tu Corazón Es Mio…”)

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ARTISTA: Kali Uchis

Autor:

Produtor, pesquisador musical e entusiasta de um bom lounge chique