Resenhas

Mariá Portugal – EROSÃO

Entre a precisão e o improviso, produtora e multi-instrumentista sobrepõe peças com edição afiada e cria paisagem sonora única e potente

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Ano: 2021
Selo: RISCO
# Faixas: 6
Estilos: Música Experimental, Música Eletrônica
Duração: 44'
Produção: Mariá Portugal

O processo natural de erosão consiste na deterioração de solos e rochas a partir da força da natureza ou pela influência humana sobre a mesma. Deteriora-se um solo até torná-lo fragmento – até que seus pedaços se espalhem a um ponto máximo que pode causar desmoronamento. Ao pé da etimologia e da semiótica da palavra EROSÃO, Mariá Portugal traz um dos discos mais bonitos que sedimentam o poder instrumental da música brasileira atualmente.

Destrutivo, editado, recomposto, o trabalho é uma viagem sonora que bebe de doses essenciais da música brasileira ao mesmo tempo em que olha para o futuro. E captura o espírito de uma Lira Paulistana de Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé (de quem Mariá é colaboradora de touros e estúdio), quebrando a canção em quase uma anti-canção para depois reconstruí-la como quebra-cabeça. Sobrepõe peças, edita sem piedade e constrói uma trilha sonora do (des)encanto.

EROSÃO traz dois elementos que parecem se propagar ao longo de sua duração: a dualidade que recorta o disco como um todo e a livre improvisação/edição, seja ela em estúdio ao vivo, sendo gravada pelas diversas musicistas e músicos que fizeram parte desse disco (Maria Beraldo, Joana Queiroz e Chicão da Quartabê, mais Thiago França (Metá Metá), Rui Barossi, André Bordinhon (Quarteto Solto), Filipe Nader, Arthur Decloedt (Música de Selvagem), Paulo Braga (Arrigo Barnabé), ou, posteriormente ao longo de dois anos, em seus processos de pós-produção que tornaram cada canção única.

Já a dualidade aparece em títulos como “‘Dois Litorais”, maravilhosa canção de oito minutos que coloca María dividida/partida – “o meu lado quente e o seu congelado” ou por duetos com Tó Brandileone (5 a Seco), que dividem o convite à erosão de sua música com tom de vozes distintos e trazem outra perspectiva quando somados em “Cheio/Vazio”. Ou mesmo pela ambiguidade grave da voz filtrada de Mariá em “Petróleo” ou na excelente ‘Telepatia’ (que faria Nicolas Jaar rever seus conceitos). Momentos que colocam o ouvinte sempre em dois lados distintos ou atos diferentes em cada canção. No entanto, tudo parece fazer sentido quando a suposta dualidade se quebra em pedaços na épica “Um Olho Aberto”. “Cara não me venha com esse papo sobre a natureza, cada um inventa a natureza que melhor lhe caia” – o binário vira não-binário, a divisão e fragmentação de todo o disco se tornam substrato, volume somado.

Entrar em uma análise estrutural (e processual) de um disco pode ser tarefa árdua e pouco convidativa, mas é uma abordagem tentadora ao falar de EROSÃO. Seus dois anos de edição resultam em um trabalho belíssimo, experimental  e dentro do campo da música eletrônica contemporânea, construindo quase uma instalação audiovisual que pode ser sentida pelos ouvidos. Ouvir o disco com fones de ouvido é uma viagem por paisagens, ruídos, micro-samples, pequenas batidas 4/4 no compasso eletrônico, instrumentos de sopro, corda e percussão e vocais que se quebram, entrelaçam em um desenho sonoro bonito, contemplativo, mas sempre potente, cortante e inesperado, que parece randomizado.

Mariá Portugal ainda amarra a minucia e a precisão com improviso e maestria, acompanhada da excelente Quartabê (Maria Beraldo, Joana Queiroz e Chicão). E quebra, reformata linguagens possíveis da música brasileira. Se a ideia de erosão (no solo) muitas vezes evoca a sensação de dissolução ou desmanche, em EROSÃO a deterioração sonora já é síntese – forte e potente – no mesmo instante.

 (EROSÃO em uma faixa: “Telepatia”)

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Autor:

Economista musical, viciado em games, filmes, astrofísica e arte em geral.