Resenhas

Father John Misty – Chloë and the Next 20th Century

Entre o deboche e a sedução, Joshua Tillman constrói universo de beleza quase exagerada e nos guia por uma viagem de suspiros e dúvidas

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Ano: 2022
Selo: Sub Pop/Bella Union
# Faixas: 11
Estilos: Indie, Folk
Duração: 50'
Produção: Jonathan Wilson e Joshua Tillman

Acredite: quanto mais tempo você passar em Chloë and the Next 20th Century, mais aproveitará o disco. Não que a obra seja daquelas que revelam camadas, detalhes ou mesmo segredos ali só na enésima audição. Também não é daqueles casos que requerem uma escuta dedicada para encontrar a beleza das faixas – pelo contrário, o êxtase é imediato, assim que se dá o play neste que é o quinto álbum de Joshua Tillman sob a alcunha Father John Misty. Mas tem algo ali que nasce da repetição, aquela dinâmica de já conhecer os caminhos que as composições e os arranjos percorrem a ponto de não se surpreender mais e, ainda assim, apreciar essas músicas como as canções que são, e isso só ocorre completamente quando o álbum fica, de alguma forma, velho para os seus ouvidos. Resumindo: é um disco que quer ser usado até ficar gasto.

Esse processo gera também uma intimidade que cai muito bem com o jogo que Tillman estabelece com o ouvinte, aquele no qual ele parece te deixar de joelhos com a beleza das músicas para, então, dar um sorrisinho debochado de sua condição. É difícil, inclusive, saber o quanto levar sua poesia a sério, e é frequente a sensação de insegurança quanto a se deixar envolver por alguma letra. O diálogo, ou “dança”, que ele estipula com quem escuta ativamente um de seus álbuns é esse, o de responder os seus passos permitindo que o músico continue guiando o baile. E você pode passar horas ali nessa conversa, mas sairá com ainda muitas dúvidas sobre suas intenções ou até mesmo o que te prende nessa dinâmica além da beleza de seu som. É uma relação quase abusiva, uma espécie de gaslighting musical provocado por um artista que te conquista por esse mistério, ou por te fazer de gato e sapato com a qualidade de seu trabalho.

O álbum começa com “Chlöe” (e termina com “The Next 20th Century”, daí o nome da obra) e sua melodia jocosa e nostálgica, uma música em preto e branco que projeta instantaneamente imagens de filmes antigos, de cerca de 100 anos atrás, na mente do ouvinte enquanto Father John Misty nos conta sobre a personagem-título até sua morte ao pular da sacada em seu 31º aniversário, no último dia do verão (“saltou nas folhas do outono”, como diz o último verso). É o mesmo clima tão familiar quanto dúbio de “Kiss Me (I Loved You)” – música que lembra bastante a faixa-título de I Love You, Honeybear (2015) – e também de “Funny Girl”, ambas com romantismo idealizado, às vezes até ingênuo, nos arranjos para narrar romances realista até demais, com todas as suas dores, nas letras. A nostalgia segue firme mesmo quando avança um pouco no tempo e nos apresenta timbres e referências da metade do século passado, caso de “Q4”, “(Everything But) Her Love” e “Olvidado (Otro Momento)” – essa última, uma tentativa até que bem-sucedida de incorporar a bossa nova ao universo Father John Misty, com versos em espanhol no refrão (uma bossa nueva, talvez?).

Essas inspirações – ou melhor, essas construções sonoras – presentes por todo o repertório coletivo do Ocidente deixam qualquer ouvinte bastante à vontade para baixar a guarda e entrar no jogo de Tillman. Você desconfia da sinceridade de suas palavras, ao mesmo tempo em que aqueles versos são muito bonitos e válidos por si só. As músicas são todas, sem exceção, de uma beleza quase exagerada, ao mesmo tempo em que são tão familiares que você se pergunta vez ou outra se elas são originais ou regravações. O que todas elas têm em comum, além das referências ao século do título do álbum, é a atitude tão característica do artista em suas últimas obras.

Na repetição de Chloë and the Next 20th Century, você já está íntimo o suficiente de Father John Misty ao ponto de aceitar a passividade de deixar a obra apenas acontecer ali na sua frente. Com o tempo, versos como “Love is much less a mystery/Than who you give it to” ganham não só corpo, mas toda a pose com que Tillman interpreta suas faixas – meio no deboche, meio na sedução. Em resposta, você se percebe fazendo pouco caso da obra de propósito, quase que de birra, mas retornando a ela assim que possível. Como uma relação tóxica e desgastada desenvolvida com as músicas. E, dessa forma, todo o universo poético do disco, da história do suicídio às guitarras distópicas na última faixa, acaba sendo vivido ao longo de uma audição já habituada a tamanha beleza, mas, ainda assim, ativamente responsiva a cada acorde.

(Chloë and the Next 20th Century em uma faixa: “Funny Girl”)

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Autor:

Comunicador, arteiro, crítico e cafeínado.