Resenhas

Michael Kiwanuka – Kiwanuka

O sucessor de “Love & Hate” supera expectativas com uma narrativa poderosa de reafirmação e uma sonoridade que aponta cada vez mais para complexidades nada apelativas

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Ano: 2019
Selo: Polydor, Interscope
# Faixas: 14
Estilos: Funk, Soul
Duração: 51'
Produção: Danger Mouse, Inflo

Depois que Michael Kiwanuka lançou Love & Hate em 2016, acabou por estabelecer para si mesmo um patamar difícil de superar. O álbum, além de indicado a diversos prêmios da música inglesa, trouxe ao mundo o single “Cold Little Heart”, que acabou se tornando a trilha de abertura do seriado Big Little Lies, produzido pela HBO. Kiwanuka, o terceiro exemplar de sua discografia, não apenas dá conta de complexificar sua música e, ao mesmo tempo, torná-la mais acessível ao grande público, como também possui uma força que supera as altas expectativas em relação a ele.

O disco compartilha o nome próprio do músico: esse é, portanto, um daqueles trabalhos assumidamente biográficos, nos quais o artista enxerga a obra como uma possibilidade da manifestação de si mesmo. No entanto, mais do que isso, a preocupação identitária de Kiwanuka ocupa um papel central por aqui, já que a pronúncia de seu nome está dividida entre a realidade europeia e a africana. Na década passada, quando o artista se preparava para uma carreira solo, ouviu da gravadora que seu nome era muito complicado, exótico, e que talvez fosse melhor alterá-lo para algo mais “acessível”. Kiwanuka é, portanto, uma reafirmação de sua identidade: “Eu não vou mudar meu nome, não importa do que me chamem” ele canta em “Hero” e “se você não pertence a algum lugar, a culpa não é sua” em “You Ain’t the Problem”, a faixa de abertura.

A questão racial perpassa o álbum. Manifestos, noticiários, tiros de pistola e metralhadora podem ser ouvidos em momentos distintos do disco. Os panteras negras aparecem no clipe de “Hero”. O racismo, e também o drama da imigração na Europa, aparecem mais literalmente nas faixas de transição, como “Piano Joint Intro” ou “Another Human Being”. Ou seja, apresentam um pano de fundo sistêmico que contextualiza a intimidade do músico no restante das composições.

No entanto Kiwanuka é expansivo, celebratório, e empresta o espírito de comunhão do Gospel e do Funk setentista como ornamentos de uma mensagem maior. No centro do LP está a batalha interna de Kiwanuka, suas ansiedades e inseguranças. Ao redor, o peso do mundo em que vive. O reconhecimento de si mesmo na dor alheia, e o ato de festejar como resistência política, são temas profundamente humanos. Um brasileiro poderá reconhecer no Samba de raiz, por exemplo, o mesmo tipo de manifestação. Ou seja, Kiwanuka se encontra geograficamente distante de nós, mas aponta para a origem em comum desse drama universal.

Danger Mouse e Inflo são os produtores responsáveis por transformar a sonoridade do álbum em algo grandioso e panorâmico. De seus contemporâneos, Kiwanuka possui o endurecerse, pero sin perder la ternura jamás de um Benjamin Clementine, o carisma de Childish Gambino e o suíngue de Jungle. Ao mesmo tempo, exala a alma do passado, reverenciando mestres como Bill Withers e Gil Scott-Heron. O álbum tem um espírito analógico, mas não necessariamente nostálgico. Sustenta-se pelo easy listening, sem a necessidade idiossincrática que se apoderou do Pop contemporâneo. 

A sonoridade mediada entre a novidade e a referência é resultado da conversa entre artista e produtores. Seus dramas pessoais e sua visão de sociedade, igualmente respondem a um diálogo entre ele e o mundo. Ou seja, no atravessamento do passado e do presente, Kiwanuka, como o nome já indica, é um manifesto do artista que o criou, mas que ganha sentido e se completa apenas no reconhecimento do público que o escuta.

(Kiwanuka em uma música: “Hero”)

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MARCADORES: Funk, Soul

Autor:

é músico e escreve sobre arte