Resenhas

Música de Selvagem – Pensamento Selvagem

Livre de nomenclaturas, banda paulistana cria obra que expressa o fluxo de informação fragmentado e os espasmos de atenção característicos do nosso tempo

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Ano: 2021
Selo: Selo Risco
# Faixas: 94
Estilos: Jazz, Experimental
Duração: 60'

A difícil classificação sonora da banda paulistana Música de Selvagem dentro dos rótulos usuais da indústria musical – jazz, experimental, instrumental, livre – sempre foi e, provavelmente, será uma questão, ao longo da sua carreira. E a selvageria sonora do grupo, que já lançou um disco instrumental autointitulado em 2016 e outro com compositores contemporâneos como Luiza Lian, Sessa e Tim Bernardes dois anos depois, nunca esteve tão solta de nomenclaturas na complexa obra audiovisual Pensamento Selvagem, lançada nos últimos momentos de 2021.

As classificações não se fazem necessárias porque o formato múltiplo e ensaísta é dividido em 94 faixas – momentos, experimentos, ritos – com também 94 capas, visões, semióticas, designs feitos pela designer Maria Cau Levy (que podem ser vistos no Instagram da banda). Outras três peças audiovisuais dirigidas por Pedro Pastoritz transformam o universo de sensações das doses ou pílulas de no máximo 1 minuto musicadas aqui, mas que em sua média duram 30 segundos, apenas.

A complexidade da obra joga no mesmo campo do improviso musical que percorreu a carreira do grupo agora formado por Arthur Decloet, Felipe Nader, Guilherme Marques, Luisa Putterman, Inês Terra e Tetembua Dandara. O jazz, apesar de não os definir, talvez os coloque numa caixa reconhecida de maneira mais imediata pelo público, por conta da transformação no improviso ao vivo, na eterna indefinição de para onde a música irá correr.

Pensamento Selvagem brinca com a ideia da incerteza do que será construído, do produto final da experimentação, a partir de recortes da internet e uma extensa pesquisa sonora dos mitos, ideias e campos de pensamento, nesse vasto mundo de dados já analisado muito bem pela mente brilhante Werner Herzog em seu filme Eis os Delírios do Mundo Conectado (2016) – e que também foi sampleado na faixa “09D_Grizzly Man”.

Contrabaixo, saxofone e bateria se misturam a samples de voz de William Bonner falando sobre o desastre da Vale em “20C_Vale”; vozes desconhecidas sobre política em “13B_Mamadeira de Piroca”; vozes repetidas em “02A_Chuva-Sol”; algum cântico de time futebol em “07D_Nadi ar-raja? ar-riya?”; ou um repórter brasileiro em “19B_Como Morrem as estrelas de Hollywood”. Esse misto entre recortes, trilhas sonoras perdidas para nosso cotidiano e experimentações em samples faz com que o disco peça um acompanhamento, por exemplo, visual, a partir das lindas capas de Cau Levy ou os vídeos de Pastoritz. Seria interessante, quem sabe, uma descrição dos samples em uma espécie de bula na contracapa para imergir ainda mais intensamente na obra – há uma curiosidade, uma vontade de ampliar a percepção a respeito das músicas. É possível pensar nesse disco como uma instalação artística, em que cada música pode ser dividida em seu próprio microcosmo, em seu próprio fone de ouvido com sua capa, descrição de ideias, samples e seu vídeo de acompanhamento.

Inspirado pelo espírito catalogador do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, o grupo explora o livre pensamento, o selvagem que não se define pela sua origem e, sim, por sua forma solta e mutável. Os exercícios aqui, ensaiados junto ao pesquisador André Goldfelder, partem sempre de um objeto cru até torná-lo cozido através de inúmeros processos que podem se repetir ou não. Tudo pode ser ou se tornar matéria-prima para a música que se produz. Entrar nas nuances de cada uma em busca de definições, além de uma tarefa impossível para um texto, é também desnecessário. A minha interpretação não será a mesma que a sua e essa é a potência deste trabalho.

Não são muitos os discos contemporâneos que trazem a complexidade tanto sonora quanto estética de Pensamento Selvagem, talvez porque ele simplesmente não se encaixe no rótulo de álbum e, sim, no de obra. Uma que expressa o fluxo de informação, hyperlinks, fragmentos e espasmos de atenção que definem o nosso século, sobretudo após o afunilamento de nossas vidas dentro do espectro virtual.

(Música de Selvagem em uma faixa: “13A_Language is a Virus”)

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Autor:

Economista musical, viciado em games, filmes, astrofísica e arte em geral.