Resenhas

Earl Sweatshirt – SICK!

Rapper balanceia o experimentalismo dos anos recentes com novas tendências e nos apresenta, mais uma vez, a um “velho amigo” que finalmente atingiu o lugar esperançoso buscado há anos

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Ano: 2022
Selo: Tan Cressida/Warner
# Faixas: 10
Estilos: Rap
Duração: 24'
Produção: The Alchemist, Thebe Kgositsile, Navy Blue, outros

No final da última década, Earl Sweatshirt mergulhou profundamente em um pântano sonoro. Com vontade iminente de dizer muitas coisas usando o mínimo de palavras possíveis, suas canções foram ficando cada vez mais curtas (Earl rimou uma média de sete minutos por ano nos últimos 10 anos em projetos solo) e a mixagem de sua voz, mais abafada. Desde 2015, os lançamentos do MC passaram a mirar cada vez menos na juventude lunática e desvairada de sua primeira mixtape para, progressivamente, escavar em busca de limpidez, equilíbrio e resposta para uma série de angústias, que iam de relações familiares com pai e mãe, até as neuroses que a indústria da música traz para um garoto negro sob os holofotes.

No fascinante Some Rap Songs (2018), ele encontra essas respostas e as compartilha, ainda que de maneira codificada. O disco, que foi pivô de um novo sub-gênero no rap underground americano, acompanhado de novos amigos que Earl fez, como MIKE, e companheiros de longa data, como Navy Blue, se utiliza de samples vocálicos e vinhetas para compor um mosaico de significados, operando muitas vezes um papel até mais central do que o do próprio rapper.

Em SICK! (2021) lançado no início de janeiro, os vocais de Earl Sweatshirt estão mais cristalinos do que nunca (trabalho feito por Young Guru, engenheiro de som conhecido por trabalhar em diversos projetos de JAY Z). A mixagem reflete a perspectiva de clareza mental que o rapper parece ter encontrado, e tanto seu discurso quanto algumas das produções mais contemporâneas do disco também se distanciam da obscuridade dos dois primeiros projetos – e da argila e do barro que ele vinha manuseando nos últimos cinco anos.

SICK! se arrisca a escolher a pandemia da COVID-19 como um de seus temas e sai bem-sucedido, exatamente porque não é sobre a pandemia em si (o que seria uma armadilha para cair em generalismos superficiais). Aqui, Earl usa sua excelente capacidade de observação (característica notável a todo grande escritor) para pontuar de maneira impressionista os reflexos do isolamento em sua. Na faixa que abre o disco, “Old Friend”, a dor em sua voz é palpável e, numa produção sem bateria, reflete sobre a instabilidade que atingiu muitas amizades devido ao isolamento. Para mim, esse é um tema muito caro, e com a abordagem sólida que Earl traz para esta faixa e para o restante do projeto, pude saber que não sou só eu que estive inseguro com minhas amizades.

A pandemia também parece ter levado Earl em uma viagem no tempo, uma vez que ele usa diversas músicas do disco para comentar sobre os períodos de Odd Future. Nunca nostálgico, em “2010” ele reconhece o impacto que sua arte teve no cenário do rap na época e comenta o quão difícil era percebê-lo enquanto acontecia, uma vez que isso exigia olhar novamente para a dor que o movia a criar. “Redirect the fight where it’s meant for/ Triumph over plight and immense loss”. Earl também passa grande parte dos 24 minutos lutando contra a inquietude interna de não poder mais sair. “Can’t go out sad, can’t go outside no more, ‘cause niggas sick”.

Em diversos momentos, ele fala sobre mudanças marcantes. Isso inclui a presença de religião e sua relação com Deus, diferente do ateísmo que declarava anos atrás. Earl dá sentido às coisas através da oração em “God Laughs”, encontra Deus “no centro de [seu] fogo apagado” em “Lye” e responde a um sino de oração em “Vision”. Há também a dualidade entre morte e vida, trazidas pela COVID-19 e a paternidade, respectivamente. O rapper ainda acha espaço para professar seu amor pela palavra e pela rima, principalmente em “Titanic” ou “Tabula Rasa”, que tentam compensar a falta de estrutura temática com fluxo lírico.

Essa miscelânea faz de SICK! um álbum menos coeso do que Some Rap Songs, por exemplo, e mudanças e contrastes acompanham também a produção do álbum. Os beats variam entre os loops lo-fi que remetem ao trabalho mais recente do artista e a sons contemporâneos e desalumiados de nomes como Young Nudy e Pierre Bourne. Alchemist é quem consegue extrair o melhor de Earl Sweatshirt com a batida de “Lye”, recheada pelos sopros que o produtor tem desenvolvido tão bem, principalmente nos trabalhos como Boldy James, rapper de Detroit. Por falar em Detroit, é da cidade do Michigan que vem o beatmaker Black Noi$e, dono de excelentes adições ao projeto — das guitarras de “Fire in The Hole” até a brisa da batida de “Vision”.

A cada álbum, Earl quase parece se tornar um rapper diferente. Não por uma obsessão Kanye Wéstica em ser um artista complexo e ousado, mas, sim, por transpor suas mudanças como ser humano de maneira surpreendentemente sincera. No final da faixa de abertura, há um sample de Fela Kuti dizendo que “enquanto a África estiver comprometida, música não pode ser [só] para divertimento. Música tem que ser para revolução. Música é a arma”. Em SICK!, o rapper balanceia o experimentalismo dos anos recentes com novas tendências para nos apresentar, mais uma vez, a um “velho amigo” que, finalmente, atingiu o lugar esperançoso que tem buscado há anos. Ele transforma um pântano chuvoso e nebuloso em um lugar para os amigos, filhos e família. Algo como o final de Shrek 4.

(SICK! em uma faixa: “Lye”)

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