Resenhas

Jesus Is King – Kanye West

O disco Gospel do rapper tangencia a sonoridade religiosa de Chicago, mas passa longe de ter qualquer efeito catártico

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Ano: 2019
Selo: GOOD – Def Jam
# Faixas: 11
Estilos: Rap, Gospel
Duração: 27'
Produção: Kanye West e outros

Após lançamentos adiados e até cancelados, Jesus Is King, o aguardadíssimo trabalho Gospel de Kanye West, finalmente chegou ao mundo. O projeto é o nono álbum de estúdio do rapper, que ressurge após uma sequência impressionante de produções no ano passado e a desistência de lançar o disco, já vazado pela web, YandhiDesde que apareceu há mais de 15 anos, com o magnífico The College Dropout (2004), Kanye deixa a temática cristã e os tons Gospel fazerem parte de seu variado caldeirão musical. Em “Jesus Walks”, hit e terceiro single do disco de estreia, ele questionou se, caso cantasse sobre Deus, as rádios tocariam suas músicas, enquanto o beat ecoa o sample de um coral da ARC, formado por ex-dependentes químicos. Mas, naquela época, embora logo de cara tenha se tornado figura badalada no show biz, Kanye estava longe, muito longe, do status de celebridade que estampa manchetes – por questões, inclusive, que vão além da música, como depoimentos endossando Donald Trump, declarações desastrosas sobre a escravidão, além dos já manjados statements auto-celebratórios. Soma-se a controvérsia e os atrasos no lançamento à genialidade do que vinha sendo mostrado no Sunday Service e é óbvio: a expectativa para Jesus Is King era enorme. Talvez nunca antes tenha havido uma mobilização tão grande para um disco de Kanye. E após o disco enfim chegar, há mais motivos para se sentir decepcionado do que abençoado.

Kanye já comprovou sua capacidade de produzir trabalhos excelentes em tempo curto, como na “maratona de Wyoming”, em 2018, que rendeu pérolas como Kids See Ghosts, feito em parceria com Kid Cudi, e Daytona, de Pusha T. Mas, em JIK, digamos que aparentemente a fadiga bateu. E, dado o contexto do lançamento, não havia hora mais estranha para Kanye, o Kanye, segurar tanto a onda – para não dizer, ser meio desleixado – nas produções. Pensando no que os domingos “YEclesiásticos” vinham entregando, a frustração é inevitável ao ouvirmos o primeiro registro de estúdio desse momento tão distinto da vida de Kanye. E o principal motivo, por incrível que a pareça, é musical. 

É capaz que alguém – ou o próprio Kanye – se refira ao som do disco como “minimalista” ou algo do tipo. Mas o caso é que JIK, alardeado como o “disco gospel” de Kanye, não corresponde à grandiosidade e à variedade sonora do Sunday Service (que serviu de inevitável “teaser” do projeto) e se escora pouco musicalmente em tradições e marcadores das raízes da música Gospel, soando mais como um disco menos inspirado de Kanye, do que como um disco Gospel de Kanye. A faixa de abertura é um cartão de visita bonito, mas ilusório. “Every Hour”, uma sobreposição de coros guiada por um piano enérgico, nos coloca diretamente na atmosfera Gospel do Sunday Service. Mas, além de terminar meio mal aproveitada – o que nos faz pensar se não renderia mais picotada em uma MPC pelo Kanye das Polos rosas –, não serve de farol para o que vem a seguir no repertório. 

Os coros até aparecem, mas pontuais, como em “Selah”, com Kanye soltando versos sob um volumoso órgão, marca tradicional do Gospel, e belas vozes crescentes em louvação. Mas, ainda que essa e outras características estejam presentes, ao final da audição parece pouco. A ambição sonora de um artista que chegou a anunciar que iria parar de fazer música secular não desponta, por exemplo, em “Follow God”, um bom Boom Bap ao melhor estilo “Old Kanye”, com sample de “Can You Lose By Following God”, do Whole Truth. Kanye jogando em casa sempre vai bem, mas para quem inevitavelmente ansiava pela riqueza de texturas – formada por metais, coros e percussões – o gosto é agridoce. “On God” é outra que traz beat envolvente com um cromatismo de synths, mas nem de perto bebe da água benta. Assim como “Everything We Need”, que até tem lá seus “corinhos” – ao estilo vozes-dobradas-sintetizadas de “Wouldn’t Leave”, de ye (2018) –, mas caberia em qualquer outro disco de Kanye e certamente não estaria entre os maiores destaques. 

As linhas melódicas de Kanye raramente reverberam a ternura do Gospel de expoentes de Chicago, como Pastor TL Barrett – sampleado em “Father Stretch My Hands Pt. 1” – e Milton Brunson, e muitas vezes são simplesmente pops demais. E de um jeito pouco sedutor. Como em “Use This Gospel”, que traz o Clipse novamente reunido, um solo debochado de Kenny G no final e um refrão de melodia previsível quase saída de uma música do Imagine Dragons. A faixa é um Rap que até vale o(s) replay(s), mas sofre de um problema que, em menor e maior grau, percorre o disco todo: soa insuficiente, feita às pressas. Parece que faltou alguém dizer “essa guia ficou ótima, agora vamos terminar a música?”

Desde que surgiu na metade do século XX, como resposta da comunidade afro-americana ao Deus dos senhores de escravo – que, segundo os brancos, chancelava a escravidão –, o Gospel ramificou suas influências em diferentes gêneros. Além do Gospel negro tradicional, cuja música ecoa principalmente nas igrejas protestantes (congregacionais e metodistas) composta em sua maioria por negros, a influência se desdobrou no Blues, no Soul, no R&B, no Rap. JIK, quando colocado junto a obras produzidas sob essa influência, entrega pouco. Não é que se esperava que Kanye encarnasse os pastores de Chicago em celebrações emocionadas, mas o disco não tem a alma de Mahalia Jackson, o Doo Wop pregador do Five Blinds Boys Of Mississipi, o tom messiânico e curativo de James Cleveland ou a energia otimista de Kirk Franklin, para citar artistas do Gospel “mais puro” – já que, afinal, é um disco Gospel, não é? Pensando em incursões do mundo Pop pelo Gospel, não há paralelos justos com uma “Jesus”, de Curtis Mayfield, uma “Heaven Is 10 Zillion Light Years Away”, de Stevie Wonder, ou até com Coloring Book (2016), de Chance The Rapper. E definitivamente não há nem perto a intensidade da fase Gospel de Al Green. O próprio Kanye já aproveitou muito melhor a influência cristã em outras ocasiões, como em “Family Business”, “Ultralight Beam”, “Ghost Town”, além da própria “Jesus Walks”.

Os dois casos nos quais a musicalidade atinge grau maior de êxtase no álbum são em “Water”, com belo refrão na voz de Ant Clemons, e “God Is”, autotunada e comovente balada com sample da faixa homônima de James Cleveland. Mas, no geral, as produções esbarram numa espécie de descuido que não corresponde ao que Kanye fez no Sunday Service, ao que se espera normalmente de Kanye e ao que se esperava do tal disco Gospel de Kanye. E esse empenho pouco memorável também aparece nas letras, com exceção especialmente de “God Is”.

Kanye, é sabido, não faz muito o estilo “mea culpa” e claro que tudo bem. Ninguém aguardava uma purgação ou remissão de pecados em forma de canção. Mas as letras, em maioria, mal riscam a superfície do caráter confessional de outras composições de Kanye, o que, no saldo final, prejudica o efeito catártico – tão caro ao Gospel. É um disco de Kanye para deixar Deus, mas principalmente ele próprio, satisfeitos. Não parece ter muito a ver com outras pessoas em busca de redenção e conforto. Mesmo sem palavrões, sem versos sobre sexo e luxúria e pautado por religiosidade, a poesia é insuficiente para expressar a transformação de “I Am A God” em “Jesus Is King”. Além de ideias que te fazem franzir o cenho, como “Closed on Sunday/you’re my Chick-fil-A”, há espaço para a famigerada egolatria de Kanye, em “I’ve been tellin’ y’all since ’05/The greatest artist restin’ or alive” (“Eu venho dizendo desde 2005/Eu sou o maior dos artitas vivos ou mortos.”) Há momentos comoventes, como o refrão de “Water” (“We are water/Pure as water/Like a newborn daughter”, em português, “Somos água/Puros como a água/Como uma filha recém-nascida”), mas, ainda que sincera e devota, a lírica carece de substância e profundidade – entregues bem mais por Pusha T e No Malice, do que por Kanye –, distanciando o disco de algum caráter político, aquele evocado pelo Black Social Gospel, de Martin Luther King. 

Ao longo de sua carreira, Kanye nunca ficou longe da exposição midiática. A qualidade de sua obra, entretanto, é diretamente proporcional à quantidade de holofotes que o cercam diariamente. Holofotes dos quais ele parece gostar, vide declarações polêmicas gratuitas que obviamente viram manchetes. Desde The Life Of Pablo (2016), sua personalidade no mundo dos músicos – e das celebridades – ficou ainda mais controversa, comentada e exposta. Tudo o que o Kanye faz e diz a gente fica sabendo. Ao ouvir Jesus Is King, o anunciado álbum Gospel, fica a impressão de que a proposta exigia mais introspecção e menos exposição, mais abstração e menos pressa. O saldo final é um diagrama insosso do que é o Sunday Service e apenas um aceno ao riquíssimo universo Gospel no qual Kanye diz agora entrar de corpo e alma. Há louvação, mas não há arrebatamento. A espiritualidade não se sobressai como consequência de uma vulnerabilidade perante às angústias mundanas. Mas o truque de Kanye é tão milagroso que um disco anticlimático faz aumentar a expectativa para o próximo. Afinal, ele anunciou: no dia 25 de dezembro, lança Jesus Is Born, que, ao que tudo indica, será o disco, enfim, “do” Sunday Service. Eu já aguardo ansiosamente. Você, se leu essa resenha até aqui, também. Não?

(Jesus Is King em uma música: “Water”)

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ARTISTA: Kanye West
MARCADORES: Gospel, Rap