Resenhas

MC Poze do Rodo – Sábio

Primeiro álbum cheio do artista carioca concentra contradições e contrastes das masculinidades negras e periféricas

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Ano: 2022
Selo: Mainstreet Records
# Faixas: 9
Estilos: Funk, Trap
Duração: 29'
Produção: DJ Felipe Rosa, Nemo, jess, Ajaxx, Mandark, Portugalnobeat, Galdino

Os primeiros passos da ascensão do MC Poze do Rodo no mundo funk foram permeados por ares de uma enigmática contradição. Aquele homem negro de favela carioca, ex-trabalhador do tráfico de drogas, com semblante fechado e sisudo, não cantava sobre sua resistência, sua força ou sobre sua mente inabalável. Ao contrário, músicas como “Saudades do Bathoca” e “Homenagem Pra Tropa do Rodo” deixavam às vistas suas vulnerabilidades e cicatrizes mais íntimas: a saudade dos amigos mortos na guerra ao tráfico entranhada ao ódio pela covardia policial e miliciana; o choro ao perceber como a vida de seus irmãos é abreviada cruelmente, afirmando então o canto como um meio para eternizar as memórias daqueles que a história costuma apagar: “Nunca vão ser esquecidos, valeu, guerrilheiro que morreu metendo bala pelo Comando Vermelho”.

Nenhum desses sentimentos e narrativas são exatamente novos ao funk proibidão. Mas enquanto nomes como MC Smith e MC Orelha (dois dos maiores expoentes da vertente) pareciam narrar experiências individuais para servir de base a um olhar crítico mais amplo, tecendo uma análise política ou filosófica da estrutura, Poze conectava-se a uma dimensão bem mais pessoal. Smith e Orelha criavam máximas agudas, escritas de uma visão coletiva ou geral, como:

“Não somos fora da lei porque a lei quem faz é nós”

“Nossa vida é bandida e o nosso jogo é bruto. Hoje somos festa, amanhã seremos luto”

“Na guerra é tudo ou nada” “Tem que ter sabedoria pra poder viver no crime, porque bandido burro morre no final do filme”

“O mesmo rosto que faz rir é o que faz chorar também”

Poze, por sua vez, canta na primeira pessoa do singular e sua voz soa como a de uma amizade que contempla profundamente o nada e, entre copos de cerveja e uns baseados, partilha a vida com o ouvinte. “Quando falaram que você morreu, pensei’ni tudo que nós viveu”, cantava ele em “Saudade do Bathoca”, seu primeiro hit, um misto de oração, acalanto e desabafo. Poze vocalizava as marcas mais pessoais de uma guerra que, ano após ano, dizima os jovens das periferias brasileiras. Com esse olho no olho, o MC criava uma conexão profunda conosco. Quase uma confissão. Um homem que foi levado pela vida a viver blindado, mas confiava em você o bastante para contar seus segredos.

Primeiro álbum cheio do artista, O Sábio concentra essas contradições e contrastes das masculinidades negras e periféricas. Poze é por si só uma pessoa complexa, onde coexistem linhas de pensamento tanto opostas. Ele nunca se arrependeu publicamente de suas falas homofóbicas (talvez performando uma certa masculinidade?), mas também deixou público o seu repúdio a Bolsonaro e seu apoio a Lula nas eleições mais importantes da história de nossa democracia. Essa espiral também está nas músicas do álbum e seus contrastes: a revolta causada pela falta de respostas sobre a morte de Marielle Franco e pela polícia que “tá matando quem acorda cinco da manhã pra trabalhar tentando ser alguém” (narradas na abertura “Talvez”) estão lado a lado com o trapfunk afrodisíaco e quente de “Ai Calica”.

Em “Mundo Covarde”, o MC reflete introspectivo sobre a morte dos amigos que não estão mais ao seu lado no jogo do Mengão ou acompanhando os afilhados crescem: “Deus tem seus planos, mas o meu peito é quem sofre”. E o mesmo MC que sente o peso da morte também está celebrando a vida e o fato de continuar de pé com dinheiro, Prada e sua Bitch em “Tô de Pé”. É a personificação sinuosa do Rio de Janeiro de sol e sangue. Do morro que irradia a liberdade do baile, mas que também vive sob repressão sufocante.

Nesses altos e baixos, nessa teia de opostos, a família ganha contornos de porto seguro e redenção. Desde o início, o tema era crucial para Poze: “Minha maior meta é deixar a minha família bem”, anunciava em “Voando Alto” (2019). Ele voltou a tocar  no assunto no hit “Vida Louca”, avisando que o principal objetivo era a “família intocável, fé inabalável”. Em O Sábio, a questão volta de forma premente na faixa final do álbum: “Não Vou Falhar”, em que se orgulha e se emociona de estar “podendo proporcionar vários momentos bom”, como uma casa em frente ao mar para a mãe. É o ápice de sua glória pessoal e da exaltação da sua sobrevivência na coletividade. Mas ao mesmo tempo coloca-se na condição limite de provedor infalível do tipo fique rico ou morra tentando — o que acaba por alimentar o ciclo de neurose capitalista do homem negro. É curioso perceber — e isso não ocorre por acaso — que quase todas as músicas do disco parecem ser sempre uma constante celebração por permanecer vivo. Mesmo quando canta sobre putaria, acelerar carros importados, consumir drogas da mais alta qualidade, sobre o desejo que desperta nas mulheres, possuir joias e roupas de marca ou proporcionar conforto para a família, Poze sempre parece estar, no fim das contas, sussurrando para si mesmo o refrão de “Tô de Pé”: ‘Cê conspirou, mas eu tô de pé”. Nada como um dia após o outro — mas o negro não pode dar-se ao luxo de falhar e, para isso, precisa reverter toda a estrutura que lhe quer morto.

No entanto, as incursões poéticas de Poze não seriam tão magnéticas se não fosse a sua voz e seus modos de expressá-la — que também se nutrem das ambiguidades dessa masculinidade negra em permanente corrida pela vida e reconhecimento. De cara fechada e sempre alerta, mas de sorriso largo e radiante, seu canto um tanto embolado, de timbre singular e de ginga marolenta dá vida ao sábio das ruas cariocas. Mas ele lembra: “Não adianta tu ser bom, tu tem que ser malandro”. Poze é discípulo e catedrático da malandragem como ética da boa vida e do bem viver, equilibrando-se entre o frio calculista e o solar desprendido — na linha de Bezerra da Silva, Moreira da Silva e bambas do Estácio de Sá. É munido dessa malandragem que Poze e outros funkeiros transformaram o trap americanizado em trilha sonora de uma cultura de cria nacional. E os sábios bem sabem.

(O Sábio em uma faixa: “Talvez”)

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