Resenhas

Robson Jorge & Lincoln Olivetti – Déjà Vu

Projeto com gravações inéditas é um muito bem-vindo epílogo do ápice criativo da dupla, que colocava a complexidade a serviço da facilidade

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Ano: 2023
Selo: Selva Discos
# Faixas: 5
Estilos: Funk, Boogie, Soul
Duração: 24'
Produção: Lincoln Olivetti, Robson Jorge

Uma força-tarefa capitaneada pela produtora e DJ Mary Olivetti (filha de Lincoln), que contou com auxílio de Kassin (produtor e parceiro musical do mago do pop), resultou em Déjà Vu, projeto de canções inéditas de Lincoln Olivetti e Robson Jorge, lançado pela Selva Discos. A louvável empreitada também teve participação de Robson Jorge Jr., Augusto Olivani e Ricardo Garcia. São cinco faixas que datam de 1982 a 1986, período de ebulição criativa da dupla – como fica evidente no clássico disco Robson Jorge & Lincoln Olivetti (1982) –, garimpadas por Mary em meio a um imenso acervo de fitas de rolo e HDs. As composições, ao que tudo indica, fariam parte de uma possível (e não concretizada) continuação do disco de 1982 e foram concebidas nos estúdios Guerenguê e Floresta, localizados na casa de Lincoln, onde os dois passavam horas e horas.

Mágico, o encontro entre Robson e Lincoln carrega uma mitologia além da sintonia sonora, revelando coincidências que nos fazem pensar “isso tinha mesmo de acontecer”, como se seus passos tivessem sido roteirizados até eles se encontrarem pelos estúdios da CBS em meados dos anos 1970. Ambos nasceram em 1954 – Robson, no Rio de Janeiro, Lincoln, em Nilópolis – e foram bizarramente prodígios: com menos de 20 anos, Robson já havia tocado nos discos Tony & Frankye (1971), da dupla Tony Bizarro e Frankye Arduini, e Apresentamos Nosso Cassiano (1973), de Cassiano; enquanto Lincoln, na adolescência, já era líder de banda/tecladista em bailes na Baixada Fluminense e, aos 16 anos, havia lançado Hot Parade Nº 1 (1970), com versões instrumentais de sucessos como “Vendedor de Bananas”, de Jorge Ben Jor, e “Raindrops Keep Falling On My Head”, da dupla Burt Bacharach e Hal David e sucesso na voz de B.J. Thomas. Dois músicos de mão cheia, adeptos de infindáveis sessões de estúdio e, sobretudo, versados tanto no pop quanto em funk, soul, MPB e jazz, passeando com naturalidade por temas de novela ou referências de trilhas da blaxploitation, backgrounds de programa de auditório ou produções dançantes que fazem uma pista explodir. Com essa versatilidade e competência, seus arranjos – juntos ou separados – encorparam produções de nomes como Tim Maia, Cláudia Telles, Wilson Simonal, Sandra de Sá, Marcos Vale, Rita Lee, entre muitos outros.

A união tão afiada teve seu momento mais deslumbrante no imprescindível disco de 1982, com faixas que mesclam a guitarra de Robson (em solos acompanhando vocalises ou apenas no bom e velho chank funkeado) à inesgotável habilidade de Lincoln pelos sintetizadores e as artimanhas de estúdio. Em uma amostra envolvente do que ficou conhecido como Brazilian Boogie por aí, o dançante e lustroso repertório é daqueles que revelam novos segredos a cada audição – e o que não faltava era desejo por mais. Dèja Vù felizmente chega para provar como o groove de Lincoln e Robson é dos anos 1980, é de agora e é de sempre.

“Suspira” abre o repertório na típica levada grandiosa e enxuta do disco de 1982, com harmonia à la The Gap Band, Earth, Wind & Fire e outros nomes fundamentais que borram a linha entre o funk mais orgânico dos anos 1970 e as possibilidades digitais da década seguinte. A faixa, que já vinha sendo tocada ao vivo antes da morte de Lincoln, tem letra de Guto Graça Mello e Naíla Skorpio e traz a guitarra discreta e crocante de Robson permeando ataques precisos de sintetizadores melódicos. Na sequência, “Dance Baby” e “You” exploram um diálogo azeitado entre teclas de synth, criando uma onda dançante preenchida por metais cirúrgicos (mas imponentes) que se harmonizam às clássicas vocalises de Robson – verdadeiro soulman cujo talento na guitarra pode ofuscar o poderio no gogó. Em “Sem Essa” – de arranjo desenvolvido coletivamente por Kassin, Diogo Gomes e Marlon Sette –, os ecos de 1982 se fazem ainda mais presentes, especialmente na introdução, que remete a “Alegrias”, encerramento do disco clássico. A composição, que ainda conta com solo de saxofone primoroso de José Carlos Bigorna, partiu de uma música incidental usada no filme Menino Do Rio (1982) durante 15 segundos, mas que nunca foi registrada em disco. Exemplo de como uma sementinha plantada por Lincoln e Robson é capaz de se tornar uma belíssima floresta tropical – quando preservada e cuidada pelos jardineiros certos. E a magia a dupla é muito por aí: um mosaico de pequenos detalhes que juntos formam uma massa sonora colossal. Você pode ouvir o disco atento a cada pormenor alojado artesanalmente em diferentes pontos da paisagem, mas, ao fim do dia e sem perceber, é levado simplesmente pela resultante, por essa coisa só, única, que é feita de um monte de coisas.

Demonstração preciosa disso está em “Batebca”, o grand finale desse déjà vu delicioso. São quase 6 minutos de uma profusão de sintetizadores de ares quase psicodélicos, vocalises sedutoras, em grooves que crescem, encolhem, crescem de novo e desembocam em lugares harmônicos surpreendentes, desafiadores e até dissonantes. Para completar, o mestre Leo Gandelman (também presente no disco de 1982) surge, equipado com seu sax barítono, aos poucos, como quem acaba de chegar para a festa e quer mostrar serviço. É como uma síntese do que a dupla realiza de melhor – do suingue mais magnético a uma face mais atmosférica, “loungeada”, com notas alongadas de synth. É aquela faixa que passa a impressão de que, se você deixar, a jam dura para sempre, propícia para qualquer músico se esbaldar e chegar com sua contribuição ao banquete – o que Gandelman cumpre com maestria. Não à toa, “Batebca” termina em um fade out, rumo ao infinito.

Déjà Vu é um muito bem-vindo epílogo do ápice criativo da dupla, com aquilo que ela produziu de melhor: complexidade a serviço da facilidade. Como Stevie Wonder ou Quincy Jones, Lincoln Olivetti e Robson Jorge colocavam, de forma brilhante e rara, o conhecimento teórico para dançar, como partituras intrincadas transmutadas em um globo espelhado. Duas criaturas de estúdio e músicos impressionantes que sabiam alinhar a audiofilia e a virtuose à diversão e ao prazer de tocar e compor. A torcida é para que ainda mais tesouros sejam descobertos. Aleluia!

(Déjà Vu em uma faixa: “Batebca”)

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