Resenhas

Björk – Fossora

10º disco da lenda islandesa é um mergulho ainda mais profundo na experimentação

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Ano: 2022
Selo: One Little Independent Records
# Faixas: 13
Estilos: Pop avant-garde
Duração: 54'
Produção: Björk

A carreira de Björk sempre esteve relacionada a tensionamentos dentro da canção pop e, mesmo com caráter experimental, sua obra se tornou referência para uma gama elástica de artistas. Porém, especialmente nos últimos anos, suas investigações sonoras se expandiram para além dessa formatação basilar do pop e se tornaram mais fluidas, mais abertas às necessidades do que ela estava interessada em dizer e/ou experimentar. Isso pode ter de algum modo afastado uma parcela de público, mas se mostrou cada vez mais instigante para aqueles que se abrem aos universos propostos pela cantora islandesa.

Fossora é mais um desses passos. Aqui, as canções parecem cada vez mais distantes da construção clássica pop de verso-ponte-refrão e parecem servir cada vez mais as intenções sensoriais da artista, seja ao contar uma história para o ouvinte ou ao criar sensações sonoras. Nesse sentido, é interessante como o disco vai do minimalismo até momentos de barulheira total, em que as sonoridades industriais se chocam com os sopros e criam tessituras estranhas, mas sedutoras. Há momentos em que a voz de Björk surge como instrumento central e logo na sequência surge uma sobreposição de instrumentos, ritmos e batidas que nos inserem no caos de uma britadeira – ouça a faixa-título e você vai entender.

Björk chegou a falar em entrevistas sobre esse ser um álbum mais festivo, que seria como uma rave pós-isolamento social, porém logo na primeira audição percebemos um álbum mais complexo e nebuloso do que uma festa techno. Björk se debruça sobre temas como a morte de sua mãe (falecida em 2018), a sua existência feminina nesse mundo, suas relações amorosas, bem como suas ramificações familiares – tanto que seus dois filhos, Sindri Eldon e Ísadóra Bjarkardóttir Barney, aparecem em participações especiais no disco. Tudo isso pelo olhar björkiano, um que faz leituras extremamente particulares do mundo, se colocando dentro de um corpo maior que é a Terra e toda a natureza a qual fazemos parte. Por isso mesmo é tão interessante mergulhar em Fossora, que, embora pareça um disco espinhoso e difuso, nos leva em uma viagem acolhedora por esse universo de pés na terra da artista.

Com produção da própria Björk, Fossora também é marcado pelas trocas da artista com diferentes nomes, desde colaborações criativas com a banda indonésia de música eletrônica Gabber Modus Operandis até as conversas vocais com nomes como Emilie Nicolas e serpentwithfeet. Artista que sempre deixou muito claro as suas referências em Björk, serpentwithfeet tem sua voz casada com a da cantora em “Fungal City”, um dos momentos mais belos do disco, em que os sopros e as batidas criam uma estranha cama para um encontro delicado de vocais. A faixa com Emilie Nicolas também propicia isso, assim como os momentos em que Björk encontra seus filhos Sindri e Ísadóra. Porém, na maioria das faixas em que canta sozinha, Björk busca outros meios de colocar sua voz, se distanciando daqueles arranjos mais jazzísticos de outras eras e se aproximando mais da spoken word, como que em narrativas míticas ou pessoais – um tipo de canto que ela já havia explorado no doloroso Vulnicura (2015) e que reverbera muitas das influências de sua terra natal.

Pouco antes da pandemia se iniciar, Björk voltou a morar na Islândia, depois de muitos anos vivendo em Nova York. Um dos pontos cruciais para essa mudança foi a violência e a sensação de que ela precisava de um espaço mais seguro para sua filha. E essa mudança é evidenciada em Fossora por uma conexão mais ampla da artista com os elementos naturais que a cercam. A relação de Björk com a natureza é uma questão que transpassa sua obra e que se torna mais e mais forte nos últimos trabalhos, desde Biophilia (2011). E isso tem a ver com uma cosmovisão da vida que é muito islandesa, digamos assim. Björk se entende essencialmente como parte desta grande natureza que a cerca – reflexão que se conecta, por exemplo, a pensamentos do brasileiro Ailton Krenak, que fala de como a humanidade infelizmente se coloca num espaço de superioridade perante todo o resto. Para Krenak, nós somos o atravessamento de todas essas perspectivas de vida na Terra e precisamos nos conectar com elas. “Alguns povos têm um entendimento de que nossos corpos estão relacionados com tudo o que é vida, que os ciclos da Terra são também os ciclos dos nossos corpos. Observamos a terra, o céu e sentimos que não estamos dissociados dos outros seres”, explica o filósofo indígena, no livro A Vida Não É Útil (2020).

Björk se conecta à Terra e à evolução dos fungos como uma forma de repensar o seu otimismo perante o mundo, de lidar com o luto por sua mãe e de também lançar determinados olhares sobre o nosso planeta em meio a tempos de pandemia e isolamentos. Ela investiga a sua própria vida e todo o seu ciclo familiar – indo da mãe aos filhos – como uma forma também de se entender enquanto parte desse ciclo da vida que nos constrói, desde os óvulos femininos até o desabrochar de fungos em espaços improváveis. E mais uma vez sua visão conversa com o olhar de Krenak sobre o mundo: “a vida atravessa tudo, atravessa uma pedra, a camada de ozônio, geleiras. A vida vai dos oceanos para a terra firme, atravessa de norte a sul, como uma brisa, em todas as direções. A vida é esse atravessamento do organismo vivo do planeta numa dimensão imaterial. […] Vida é transcendência, está para além do dicionário, não tem uma definição”.

E, para finalizar, retornamos mais uma vez ao Krenak: “desde muito tempo, a minha comunhão com tudo o que chamam de natureza é uma experiência que não vejo ser valorizada por muita gente que vive na cidade. Já vi pessoas ridicularizando: ‘ele conversa com árvore, abraça árvore, conversa com rio, contempla a montanha’, como se isso fosse uma espécie de alienação. Essa é a minha experiência de vida”. Isso tem uma completa relação com o mesmo olhar que coloca a Björk nesse espaço de uma figura esquisita, estranha, que vive fora da realidade, quando na verdade ela está em constante conexão com a realidade do planeta, com o que há de mais central nas nossas construções enquanto seres vivos. E aqui essa conexão/busca está ainda mais sobressalente.

Fossora, no final das contas, não é um trabalho acessível de cara, ele pede o nosso tempo e a nossa atenção, para nos levar a caminhos sonoros imprevisíveis – além de oferecer toda uma gama de visuais que explora o universo dos fungos e das paisagens islandesas. Embora haja vislumbres de trabalhos anteriores de Björk, como vozes que ecoam o Medúlla (2004) ou sopros que já davam as caras em Utopia (2017), ela, novamente, entrega um trabalho exploratório de quem busca descobrir o novo e se em embrenhar em possibilidades ainda não navegadas. Fossora é uma palavra que vem do latim “fossor”, em tradução direta, seria “escavador” – e esse não poderia ser um melhor nome para um disco em que Björk desvenda suas próprias histórias, seu passado e suas referências em busca do novo e do agora.

(Fossora em uma faixa: “Atopos”)

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ARTISTA: Björk

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