Resenhas

Sufjan Stevens – Carrie & Lowell

Músico compartilha sua história, sua dor e suas crenças com personalidade, ternura e criatividade – e nos convida à meditação, à reflexão e, sobretudo, à cura

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Ano: 2015
Selo: Asthmatic Kitty Records
# Faixas: 11
Estilos: Folk, Indie Folk
Duração: 43'
Produção: Sufjan Stevens

 

(Resenha originalmente publicada em 1 de abril de 2015 e reeditada para esse especial)

 

A Bíblia é composta por 66 livros divididos em dois momentos históricos (antes e depois de Cristo). Desses, 65 trazem momentos em que Deus se comunica e se revela à humanidade, enquanto um deles, Salmos – não por acaso, o maior de todos –faz o oposto e mostra o homem se expressando ao divino. E esse livro está presente no meio dos outros (literalmente no centro da Bíblia), porque é quando o indivíduo expressa, com sinceridade, o grande crescimento espiritual, tanto para ele, quanto para quem está por perto e observa o processo.

É delicado falar de Bíblia, Deus e oração em épocas quando esses termos estão no zeitgeist ligados ao fanatismo religioso, mas Sufjan Stevens sempre soube comunicar sua fé sem ser doutrinário e, assim como em Salmos, falar em primeira pessoa sobre suas próprias experiências. Isso fica ainda mais forte em Carrie & Lowell, álbum feito em resposta ao falecimento de sua mãe em 2012 e um retrato de sua maturidade na fé.

Ele vem marcado também como seu retorno a uma estética já muito conhecida (e querida) de seus fãs: músicas com menos elementos dentro de uma sonoridade referencialmente Folk (se não para o músico, para o público). Desta forma, o cantor, compositor e produtor norte-americano firma de vez seu lugar entre uma longa linhagem de artistas que, munidos de seus violões, cantam sobre a relação entre a nossa vida neste planeta e aquilo que só se enxerga pela espiritualidade – a mesma tradição que nos deu Bob Dylan, por exemplo. Ao trabalhar ambientações construídas com timbres eletrônicos, Sufjan mostra que dá continuidade a esse legado sem perder de vista as linguagens de hoje, nem os temas atemporais.

Os primeiros acordes de “Death with Dignity” dão o tom dos arranjos de todo o disco, enquanto os versos “Spirit of my silence I can hear you / But I’m afraid to be near you /And  I don’t know where to begin” fazem o mesmo com a lírica da obra. “Should Have Known Better”, na sequência, cresce aos poucos para dar conta do ouvinte seguir o desenlace emocional da letra, como se o autor ficasse cada vez mais à vontade para se abrir. Se as primeiras estrofes vêm mais subjetivas, sua progressão traz relatos do passado (“When I was three, three maybe four / She left us in that videostore”) e reflexões íntimas (“I should have known better / Nothing can be changed/The past is still the past / The bridge to nowhere / I should’ve wrote a letter / Explaining what I feel, that empty feeling”).

Nas duas próximas, “All of Me Wants All of You” e “Drawn to the Blood”, fica mais fácil de entender sua opção pelos arranjos mais discretos, mesmo que as composições pareçam estar prontas para dimensões megalomaníacas (dá para imaginar a segunda sendo uma explosão de força nas mãos de Arcade Fire). Mas Sufjan canta baixinho, canta cansado, na expressão de seu luto. Essa postura acaba sendo um convite a mais para seu som e dá mais segurança ao ouvinte para explorar o álbum e suas nuances melancólicas e até sombrias (“Do I care if I despise this? / Nothing else matters, I know / In a veil of great disguises: How do I live with your ghost?”, em “The Only Thing”, uma das melhores do disco), alternadas com momentos musicalmente mais leves, como “Fourth of July”. Por mais sincera que seja, sua mensagem vem equilibrada, na medida certa para o ouvinte se identificar com as músicas e cantá-las em primeira pessoa também.

Uma das respostas emocionais ao disco é, porém, o deslumbre. A união de cordas e o coro baixinho da faixa-título estão ali para serem ouvidos de olhos fechados. É aí que a obra encontra seu clímax em “John, my Beloved”, faixa que explora a mortalidade e tudo o que ela carrega (arrependimentos, saudades, solidão), com um refrão emblemático (“So can we pretend sweetly/Before the mystery ends? / I am a man with a heart that offends / with its lonely and greedy demands / There’s only a shadow of me / in a manner of speaking I’m dead”) e a conclusão que traz o tema central do disco (“Jesus, I need you, be near, come shield me / From fossils that fall on my head / There’s only a shadow of me / in a manner of speaking, I’m dead”).

Após tudo isso, o fôlego que resta é para “No Shade in the Shadow of the Cross”, a primeira música revelada da oobra, por conter muito da identidade do disco em tema e sonoridade – e é aí, quando ouvimos ela quase no fim de Carrie & Lowell, que fica mais clara a coesão que o disco tem. Cada faixa carrega seu DNA de tal maneira que revele seu papel dentro do álbum, ao mesmo tempo que, se misturada com alguma de qualquer momento de sua discografia, poderia ser identificada como parte desse todo. O ao vivo Carrie and Lowell e a trilha de Me Chame Pelo Seu Nome, ambos lançados dois anos depois do disco, argumentam a favor dessa coesão.

Quando a conclusão chega na lúdica e onírica “Blue Bucket of Gold”, percebemos que estivemos diante de uma obra que marca pela sua personalidade, com músicas excelentes, interpretação à altura, grande coesão e uma admirável vontade de não se conformar com limites estilísticos do Folk, Indie ou qualquer outro termo desses. É um trabalho – com o perdão do termo – impecável. Cantando sussurrado, Sufjan Stevens compartilha sua história, crença e sinceridades a um ouvinte que é convidado a participar de uma sessão de meditação, reflexão e cura pela música.

(Carrie and Lowell em uma faixa: “The Only Thing”)

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Autor:

Comunicador, arteiro, crítico e cafeínado.