Resenhas

Wilco – Cousin

Mesmo com lampejos do “velho Wilco”, 13º disco da banda mantém a sutileza que vem caracterizando Jeff Tweedy e companhia nos últimos anos

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Ano: 2023
Selo: dBpm Records
# Faixas: 10
Estilos: Rock, Rock Alternativo, Country Alternativo
Duração: 42'
Produção: Cate Le Bon

Com qual frequência você pensa sobre o Império Romano? Eu, pessoalmente, não penso nunca. Por outro lado, eu penso muito, muito mesmo, sobre o Wilco. Curiosamente, pensar sobre o Wilco, e mais especificamente sobre seu mais novo lançamento, o álbum Cousin, me forçou a puxar da memória aquelas aulas sobre o Império Romano dos tempos da escola.

O imaginário imperialista nunca desceu bem para Jeff Tweedy e sua turma, mas é possível forçar um paralelo entre o que as pessoas normalmente pensam (ou estudam) quando pensam sobre Roma. Normalmente, as aulas desse período histórico se resumem a guerras de expansão pela Europa e pelo Mediterrâneo ou a fúria conquistadora de líderes como Júlio César. É o período heroico da história do império romano, cheio de turbulências e reviravoltas.

Tumultuado também é o período que as pessoas mais gostam de se lembrar do Wilco: a virada do século 21, de discos como o clássico Yankee Hotel Foxtrot, com uma banda disposta a desafiar a indústria e a si mesma, desconstruindo o próprio country alternativo que eles ajudaram a moldar nos anos 1990. Para isso, Jeff Tweedy e seus amigos (ou não, no caso de Jay Bennett) empregaram armas diversas: experimentalismo, desconstruções sonoras, antropofagia à la americana e letras que colocam em evidência o mal-estar social caótico e cheio de contradições do período, em especial nos Estados Unidos. Tudo isso, porém, é feito com uma sensibilidade pop invejável, que tornava os álbuns complexos e, ao mesmo tempo, viciantes, irresistíveis. Mais ou menos como um filme de guerra ou de gladiador.

Há, porém, outro período da história romana, igualmente heroico, mas que pouca gente estuda na escola: o que acontece do século 1 d.C até o século 3, quando esse império começa a se esfacelar. É uma época que começa naquele período chamado pax romana, com segurança interna, expansão generalizada e uma sequência de “bons imperadores” – alguns deles até se dedicaram à filosofia nas horas vagas.

Assim também tem sido a vida do Wilco ao longo dos últimos 15 anos, uma pax wilcana coincide com a estabilidade na formação do grupo, a sobriedade de Jeff Tweedy e a conquista de certos fatores que permitem a eles total autonomia criativa – como estúdio, selo e até festivais próprios. Essa espécie de zona de conforto faz com que seja fácil fetichizar o período anterior, como quem romantiza guerras sangrentas sem pensar muito sobre o assunto, deixando de lado a continuação da História. Talvez por isso, há alguns bons anos todo lançamento da banda é acompanhado pela expectativa – sempre injusta, preciso dizer – de termos em mãos um novo disco do velho Wilco.

Mas ao dar play em “Infinite Surprise”, faixa que abre Cousin, os viúvos da “fase heróica” do Wilco podem respirar aliviados. Carregada de texturas, sintetizadores distorcidos e desconstruções de guitarras que remetem a “I Am Trying To Break Your Heart” e “Art of Almost”, outras antológicas faixas de abertura, a música é exatamente o que se espera do Wilco. “Infinite Surprise” começa e termina de súbito, como se vibrasse através de um fone de ouvido com mau contato, mas nos 5 minutos e 43 segundos em que se mantém funcionando, as melodias atingem o ouvinte como uma espécie de milagre.

Logo na sequência, “Ten Dead” traz Nels Cline novamente livre para explorar melodias de jazz com sua guitarra, num crescendo de tensão, enquanto Jeff Tweedy denuncia sua própria impotência cansada e autoconsciente diante da banalização dos tiroteios em massa nos Estados Unidos: “I woke up this morning/ And went back to bed/ Ten dead, ten dead/ Now there are ten dead”.

Diante do calibre dessa dobradinha, os dedos coçam para cravar como acertada a escolha de trabalhar com uma produção externa, algo que não acontecia no reino do Wilco desde 2009. A escolhida foi Cate Le Bon, artista galesa que habita o universo expandido da banda desde 2019, quando fez parte do line-up do Solid Sound, espécie de Bienal do Wilco que acontece nos arredores de Boston. O trabalho de Le Bon, com DNA totalmente experimental, fortalece a hipótese de que a banda estaria “finalmente” disposta a se desafiar “novamente”.

Contudo, a insistência nessa narrativa de renascimento criativo após um período de hibernação oferece uma perspectiva bastante míope para o trabalho que Jeff Tweedy, John Stirratt, Mikael Jorgensen, Glenn Kotche e Nels Cline vêm construindo nesta última década. A fase heroica do Wilco é tão emblemática por ser um produto perfeito do próprio tempo, tanto de uma perspectiva histórica, quanto de uma perspectiva pessoal. Mas os tempos são outros.

Um dos desafios mais interessantes que a banda vem encarando (e não é de hoje) é o de se manter fiel ao espírito deste tempo, que talvez agora não precise mais de vozes como as deles na linha de frente de quem dita ritmos e denuncia dissonâncias. “Não há muitas bandas de rock formadas por homens brancos [hoje] que me pareçam vibrantes de alguma forma. Não sei com que o se importam além de manter e proteger seu status, e eu não quero que o Wilco se veja dessa maneira.”, diz Tweedy em entrevista recente à revista Spin.

Diante de tal perspectiva, o silêncio resignado seria um caminho mais cômodo, assim como a denúncia distanciada. Contudo, desde Ode To Joy está claro que o sexteto do Chicago está disposto a ocupar o único lugar que lhes cabe sem se desviar de suas contradições incômodas (como é possível ouvir em faixas como “Citizens” e “Before Us”), tampouco querendo nos convencer de que a história deles é a história mais importante do momento.

Em 2022, o álbum duplo Cruel Country veio ao mundo não só após o final do governo Trump, mas também durante o arrefecimento da pandemia global, e reforça esse posicionamento com a proposta de revisitar o country de dentro. Mas Cruel Country não é bem isso, ou só isso, mas um interessante exercício de forma e meditação lírica sobre a arrastada queda moral do Império Norte-Americano, que celebra laços e conexões onde eles são cada vez mais raros e improváveis, e acolhe toda a carga afetiva de um gênero que simboliza algo corrompido. Para alguns, pode soar como uma empreitada simples, quase indulgente, mas é um baita de um atrevimento.

E não para por aí: após o show de lançamento de Cousin, na última semana, Tweedy escreveu em sua newsletter que a banda decidiu que “Ten Dead” não estaria mais no repertório da turnê. Num ambiente de celebração como o de um show, ele argumenta, a música soa “desanimada, anestesiada e fria” de uma forma que só pode ser apropriada quando nos alcança de forma íntima, individual. São poucos os artistas que colocam em xeque seu próprio lugar no cânone dessa forma, ainda mais com tanta velocidade.

Assim, a presença de Cate Le Bon na produção ganha camadas mais complexas e interessantes: “Pareceu-me muito certo pedir a uma mulher para produzir um álbum para nós porque foi uma maneira honesta de vencer algumas dessas premissas”, disse Tweedy na mesma entrevista. O Wilco nunca fez o que era esperado deles e parece fiel a esse compromisso.

Já em termos de sonoridade, o grande mérito de Cousin e Cate Le Bon em relação aos trabalhos anteriores está em oferecer uma amostra sucinta e muito eficiente do tipo de música que interessa ao Wilco nesse momento. Após o impacto das duas faixas iniciais, a partir de “Levee” a banda parece retomar a marcha mais lenta dos trabalhos anteriores, com momentos de certa familiaridade (os dois singles do álbum, “Evicted” e “Cousin”, parecem versões requentadas de uma série de outras músicas que a banda já fez antes) alternados por canções de beleza delicada e, ao mesmo tempo, desconcertante.

É o caso de “A Bowl and a Pudding”, que chama atenção por sua cintilante harmonia de cordas, ou das texturas de “Pittsburgh” que fazem a guitarra de Nels Cline brilhar de maneira catártica (ainda que breve) após quase 3 minutos de intrincada construção sonora de violão, sintetizadores e bateria. Outro bom momento surge do agudo rouco na voz de Jeff Tweedy em “Meant To Be”, temperando com certo desconforto um conjunto de letra e melodia que, apresentados de outra forma, poderia soar como apenas uma canção romântica good vibes à la The Cure. Aqui, no entanto, nunca vamos saber se um amor cravado pelo destino é uma benção, uma maldição ou apenas um delírio do eu-lírico.

Não são músicas para explodir a cabeça de um só golpe. Pelo contrário: o mérito desses trabalhos está na sutileza utilizada para pintar uma atmosfera que encanta de maneira ambígua, como um desses crepúsculos coloridos causados pela poluição: “It’s good to be alive, it’s good to know we die”, eles estão sempre prontos para nos lembrar. Há algo de honorável também na ousadia artística de bancar, de novo e de novo, uma proposta lírica e estética que propõe um exercício que recompensa ouvido e escuta atentos e a disposição de sentar junto com eles perante o desconforto.

Em tempos bicudos como os atuais, às vezes faz falta a urgência angustiada do velho Wilco, ou canções pop redondas e bem temperadas de antigos clássicos como “Heavy Metal Drummer” e “I’m Always In Love”. Elas seguem lá, ao alcance de um clique, para quem quiser ouvir. O que me parece mais novo e fresco é o olhar maduro de artistas tão prolíficos que, aí sim, se desafiam a manter uma disciplina criativa para revelar o que existe além da montanha: o cenário desolado depois que a bomba explode e as cinzas da bandeira há muito estão no chão; o que acontece com o amor diante do tempo; o que significa fazer arte depois que o mito se desfaz e o gênio está nu.

Se Jeff Tweedy gastou alguma fração do seu tempo pensando sobre o Império Romano, provavelmente foi para admirar o seu declínio, sem qualquer tipo de comiseração. Que bom para ele, que bom para nós.

(Cousin em uma faixa: “Ten Dead”)

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ARTISTA: Wilco