Resenhas

Caetano Veloso – Araçá Azul

O primeiro disco pós-exílio do baiano é possivelmente o seu registro mais experimental: atravessa diferentes gêneros, brinca de poesia concreta e desafia o ouvinte a cada faixa

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Ano: 1973
Selo: Philips
# Faixas: 10
Estilos: Tropicalismo, Poesia Concreta, MPB, Bossa nova
Duração: 43'
Produção: Caetano Veloso

 

É verdade que desde “Alegria, Alegria” qualquer lançamento de Caetano Veloso gera ansiedade e ganha atenção. Mas a expectativa no caso de Araçá Azul (1973) era especial. Além da volta do exílio em Londres, a recepção calorosa do histórico Transa (1972), uma fusão deslumbrante entre ritmos brasileiros e o Rock dos anos 1970, incrementou a mística de gênio imprevisível do baiano que, quase três anos depois, retornava à terra natal. O que Caetano pós-exílio, na época em que a Tropicália já era uma memória distante, iria aprontar agora, em casa de novo?

Caetano se alojou por uma semana no Estúdio Eldorado, em São Paulo, acompanhado de pouquíssimas pessoas, e, com o aval de André Midani, o então presidente da PolyGram, gravou o álbum mais experimental – ou “mais difícil”, como alguns dizem – de sua discografia. Influências da poesia concreta e sons cotidianos não-exatamente-musicais se aliam aos ecos tropicalistas em uma experiência que navega pelo minimalismo, a psicodelia, a estranheza e por alguns momentos de singeleza Pop. As boas-vindas a Santo Amaro da Purificação são dadas pela conterrânea Edith Oliveira, a Dona Edith do Prato, no samba de roda “Viola Meu Bem”, que, após um fade out, dá lugar a “Da Conversa”, uma sobreposição de barulhos arbitrários, grunhidos e breves melodias ritmadas. Na mesma faixa, os ruídos se misturam à voz de Caetano na versão de “Cravo e Canela”, canção de Ronaldo Bastos e Milton Nascimento, incluída na estreia do Clube Da Esquina, no ano anterior. 

A viagem fica um pouco mais segura em “Tu Me Acostumbraste”, linda releitura da composição do cubano Frank Dominguez, com linhas vocais elásticas de Caetano indo dos graves aos falsetes entre um verso e outro. Guiada por aliterações e harmonia quase debochada, “Gilberto Misterioso” traz as repetições do concretismo e é seguida por mais uma piração ruidosa em “De Palavra Em Palavra”, uma espécie de ASMR ao contrário invadido ao final por um histérico pedido de silêncio. Com o peso de guitarras e uma bateria furiosa, o medley “Do Cara/Eu Quero Essa Mulher” dá uma folga ao minimalismo e é até hoje uma das produções mais roqueiras da discografia de Caetano. 

A toada segue alternando entre experimentações e lampejos mais familiares com “Sugar Cane Fields Forever”, que, ao longo de mais de 10 minutos, percorre o Samba de Roda (mais uma vez com canja de Edith Oliveira) e a Bossa Nova, em meio a solos de viola remetendo a Pepeu Gomes. Já “Julia/Morena” encarna a levada de João Gilberto, mas é muito mais errática e despreocupada, aliança presente em tantas outras composições de Caetano dali em diante. Todo o experimentalismo, as fusões sonoras, as brincadeiras com ruídos e as influências da poesia concreta têm seu desenlace surpreendente na simplicidade e na beleza da faixa-título, que fecha o repertório do álbum e entoa o mantra “com fé em Deus, eu não vou morrer tão cedo”.

Segundo matéria publicada no Jornal do Brasil em 1973, o disco obteve um expressivo número de devoluções nas lojas. Justo ou não, Araçá Azul entregou uma expressão sincera e deliberadamente provocadora daquele momento de Caetano e cravou de vez no imaginário o espírito inquieto e único que caracterizaria sua obra para sempre. Foi a desconstrução final da ideia convencional de um ídolo Pop, que, dada a musicalidade do disco, rejeitava o status de um astro encaixado a qualquer norma mercadológica/musical. Se cinco antes, no auge da explosão tropicalista, o jovem Caetano respondeu raivoso às vaias no Festival Internacional da Canção dizendo que ninguém estava entendendo nada, em Araçá Azul, ele dobra a aposta de forma ainda mais decidida: àquela altura, já não importava se alguém entenderia ou não. De qualquer forma, há mais de 45 anos a gente segue entendendo um pouquinho mais a cada nova audição.

(Araçá Azul em uma música: “Sugar Cane Fields Forever”)

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