Resenhas

Fiona Apple – Fetch The Bolt Cutters

Mais do que um retorno triunfal, uma aula e uma tradução de quem é, afinal, Fiona Apple – quase 25 anos após sua estreia

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Ano: 2020
Selo: Epic
# Faixas: 13
Estilos: Art Pop, Alt Rock, Jazz Pop
Duração: 51'
Produção: Fiona Apple, David Garza, Sebastian Steinberg e Amy Aileen Wood

O mundo de 2012 parece muito distante do caos do início da nova década. Esses oito anos também separam os últimos trabalhos da cantora e musicista americana Fiona Apple. O disco The Idler Wheel… (2012) soa como uma introdução à nova estética da artista, consagrada com maestria em Fetch The Bolt Cutters, lançado em abril. O álbum chegou a correr o risco de ser adiado para outubro, mas manteve a data original. Além dos fãs ansiosos pelo retorno, as 13 músicas se tornaram a trilha oficial da quarentena de músicos dos mais variados, como o roqueiro Dave Grohl e novas divas Pop, como Christine and the Queens e King Princess. Em entrevista à NPR, a cantora falou do desejo de que o registro ajude pessoas, que seja uma experiência catártica. Imagina que há alguém sozinho em casa ou aqueles que passam por situações desagradáveis – que elas consigam se desligar por 50 minutos durante a audição do disco. Talvez essas músicas ajudem a entender sentimentos confusos ou a combater a sensação de isolamento.

O apelo foi notado pelos fãs e pela crítica. FTBC ganhou a maior nota na história do site Metacritic, ultrapassando o cultuado To Pimp a Butterfly (2015), de Kendrick Lamar. Recebeu uma nota 10 da Pitchfork, que o descreve como “uma sinfonia selvagem do cotidiano” e uma “obra-prima”. The Guardian, Rolling Stone e NME também o consagraram como o melhor de sua carreira, que teve início na segunda metade dos anos 90.

Em sua maioria, as críticas internacionais foram escritas por mulheres, afinal, grosso modo, é um registro sobre uma experiência muito singular. Poucas jornalistas conversaram com Fiona sobre as novas canções, e o resultado foram longas entrevistas publicadas em veículos tradicionais – New Yorker, Vulture, NPR e ELLE. Ela falou também à televisão, no programa Democracy Now!, disponível online. Nenhuma das repórteres eram novatas, todas possuem alguma relação prévia com a artista, que não falava com a mídia há anos. Nesse tempo, estava reclusa – como o mundo está agora, devorando séries e cuidando dos pets –, mas ligada em discussões online, com algumas aparições pontuais.

No ano passado, anunciou que todos os royalties de sua música “Criminal” (Tidal, 1996), iriam para a instituição While They Wait, voltada a imigrantes do país. Ainda em 2019, regravou a canção “I Know”, de When The Pawn… (1999), com direito a feat de King Princess. Participou também de um cover de Simon & Garfunkel, “7 O’Clock News/ Silent Night”, ao lado de Phoebe Bridgers e Matt Berninger, para apoiar o Planned Parenthood – organização que protege os direitos reprodutivo das mulheres. Dois anos antes, havia lançado uma faixa de apenas um minuto, chamada “Tiny Hands”. A maneira que encontrou para contribuir com os protestos contra a eleição de Trump é lançada especialmente para a Women’s March. “Não queremos as suas mãos minúsculas em nenhum lugar perto das nossas calcinhas”. 

O momento do lançamento veio a calhar. Fiona não é, pensando na lógica das grandes gravadoras, muito chegada à exposição e à rotina de divulgação dos discos – programas de televisão, turnês, ações de marketing. Viu-se livre dessas obrigações na realidade de coronavírus. Ela não faz o que não quer e realmente conquistou e mereceu esse lugar – de fazer somente o que quer. E isso se traduz em suas novas músicas. O seu primeiro disco, Tidal (1996), surgiu no momento em que outras cantoras alternativas à estética Pop hiperssexualizada também começaram a aparecer, como Tori Amos e Alanis Morrissette.  A questão é que ninguém consegue soar exatamente da mesma maneira que Fiona, que tempera suas criações com ingredientes inesperados e até idiossincráticos, mas não menos libertadores.

Ao longo da narrativa do novo disco, suas letras servem como uma forma de mensagem para a Fiona do passado, que sofreu com a exposição precoce e com a forma como o mercado da música funcionava na virada do milênio. Recém-saída da adolescência, passou quase dois anos em turnê ao lado de onze (11!) caras, sendo a única mulher em um mundo de homens adultos. Também estamos falando de uma sobrevivente que, aos 12 anos, sofreu um estupro e rezou para o violador, como lhe foi ensinado na tradição religiosa. Sofre de TOC, estresse pós-traumático e depressão há anos.

A artista veterana tem quatro discos bem-sucedidos no currículo, mas, ao mesmo tempo, o clima atual parece ser de estreia. FTBC foi gravado e produzido inteiramente no conforto de seu lar, no bairro de Venice Beach, em Los Angeles e é resultado de explorações: sonoras e de memórias. Ele também é inédito na maneira como foi gravado, uma vez que Fiona decidiu fazer tudo em casa, diferente do processo de estúdio.

As canções vêm sendo lapidadas desde 2015, após jams com os companheiros de banda e coprodutores – David Garza, Sebastian Steinberg e Amy Aileen Wood. Além de muitas horas desbravando os recursos do GarageBand e testando diferentes tipos de percussão, que reforçam as linhas do piano, baixo, guitarra e bateria. A colagem sonora é rica de detalhes, espaços, respiros, particularidades minuciosas, que o fazem soar tão único. Nas 13 músicas, sua voz aparece suave, intensa, sussurrada, gritada, rasgada, como um instrumento misturado às diferentes camadas e texturas. Em uma das entrevistas, Fiona disse que esse é o primeiro trabalho em que se vê como musicista. Estudou piano clássico na infância para trazer sua técnica inconfundível para canções Pop, quebradas ou explosivas, mas sempre coesas.

Em geral, a sonoridade de FTBC surpreende por sua intensidade e espontaneidade. Cinco cachorros são creditados – você consegue ouvir latidos em segundo plano em algumas músicas. Esses “erros” de gravação se tornaram camadas afetivas e especiais nas canções. Na faixa-título, além dos amigos caninos, há miados da amiga e super modelo britânica Cara Delevigne, que adicionou algumas vozes com seu sotaque britânico.

A decisão partiu do próprio título, “busque os alicates”, frase proferida pela atriz Gillian Anderson na série britânica The Fall. A cena acontece quando a detetive resgata uma menina que havia sido sequestrada. Fiona teve um momento de epifania e percebeu que o disco deveria ter esse nome. Algo como se libertar das coisas que podem nos prender, seja a própria mente ou prisões construídas por outras pessoas. Suas letras funcionam como crônicas dessas experiências, das ruins e das boas. Quando sofreu bullying na escola (“Shameika”), ao se perceber no papel “da outra” (“Relay”) ou como é viver uma vida com depressão (“Heavy Balloon”). A regressão aparece em momentos da infância até em traumas geracionais, vividos por sua mãe e pela avó.

Passando também por temas atuais, como o caso da nomeação de Brett Kavanaugh, acusado de abuso sexual, para a Suprema Corte americana. Fiona dedicou a canção “For Her” para o ocorrido. Soa quase kitsch, com flow acelerado no começo e um final etéreo, que inclui o verso: “você me estuprou na mesma cama que a sua filha nasceu”. Da mesma maneira que as suas palavras podem ser objetivas, seus poemas são pulsantes e cheios de significado. “Uma sensibilidade radical”, como pontuado pela New Yorker.

Outra característica marcante aparece em forma de humor – ao mesmo tempo em que pode ser sisuda, ela também pode ser leve. E reconhece isso em “Shameika” – “Tony told me he’d describe me as pissed off, funny and warm”(“Tony disse que ele me descreveria como brava, engraçada e calorosa”). Sua tradição é de brincar com palavras de frases que lhe foram ditas, de histórias observadas e metáforas recheadas de significados.

Pode tirar onda da coleção de guitarra do ex, em “Rack of His”, com uma levada desacelerada e intensa. Ou falar sobre sua relação com as mulheres e as heranças afetivas de ex – na brilhante “Ladies”.  O seu tom vem de um lugar íntimo, onde a honestidade é algo essencial. O sentimentalismo parte da fragilidade, do desejo de ser amada e reconhecida, seja romântico ou não. Em “Cosmonauts”, fala: “porque eu só gosto de mim quando eu olho nos seus olhos”.

Fiona encontrou na vulnerabilidade a sua maneira de se comunicar de forma sincera. Ao som de voz e piano, logo na faixa de abertura, ela proclama: “I Want You To Love Me”. Canta sobre o paradoxo de entender que o tempo é elástico, que poucas coisas importam a longo prazo, mas que, ao mesmo tempo, enquanto estiver viva, busca ser amada. Depois de anos (e até décadas) de dúvidas, questionamentos e inseguranças, fez as pazes com o sentido que norteia a sua existência. Que só é possível como autora de obras intensas e marcantes.

(Fetch The Bolt Cutters em uma faixa: “Ladies”)

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ARTISTA: Fiona Apple

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