Resenhas

Juçara Marçal – DEB RMX

Com time afiado de produtores, disco de remixes aprofunda ainda mais as possibilidades sonoras de “Delta Estácio Blues”

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Ano: 2024
Selo: QTV
# Faixas: 15
Estilos: Experimental, Funk, Drone, Música Eletrônica
Duração: 49'
Produção: Vários

De Sandy & Junior a Björk, de Nine Inch Nails a Madonna, os álbuns de remixes estão consolidados na indústria musical há décadas e atravessam uma ampla gama de gêneros musicais do pop mainstream ao circuito alternativo. Mas poucos são os casos em que um álbum de remixes é, de fato, interessante para além dos círculos de fãs. No geral, trata-se de uma estratégia para manter aceso por mais tempo o interesse em determinado disco, como prolongar a vida útil de um produto. Mas o panorama é diferente em DEBRMX, o disco de remixes de Delta Estácio Blues (2021), o mais recente álbum da cantora Juçara Marçal.

Na verdade, DEBRMX não é a primeira expansão de Delta Estácio Blues. No ano passado também foi lançado o EPDEB, com quatro faixas que não entraram no disco principal. São as sobras de estúdio, então? Essa seria uma forma simplista de dizer. EPDEB é o desdobramento da experiência-Delta, um processo criativo que levou Juçara Marçal e seu parceiro Kiko Dinucci a um método de trabalho quase inédito para a dupla: compor a partir dos cacos, dos samples, dando vida a emaranhados de fragmentos eletrônicos e ruidosos, envolvendo-se em pedais de efeitos e samplers.

Assim como o EP do ano passado, DEBRMX adquire consistência porque expande o álbum enquanto processo. É precisamente por sua musicalidade ser fundada na lógica da apropriação, colagem, sampleamentos e remontagens que os remixes de Delta não se tornam um mero produto colateral do álbum-núcleo, mas sim um aprofundamento na mais intensa energia e experiência criativa que a obra nos trouxe. Em seu terceiro ato, Delta Estácio Blues se dissolve para além de Juçara e Kiko. Como um rio que segue em direção ao mar, suas músicas misturam-se aos sons de uma ampla diversidade de artistas, que desfazem e remontam o quebra-cabeça musical de Delta Estácio Blues a seu modo.

A multiplicidade de DJs e produtores escalados para o trabalho é incrível. Vai das experimentadoras Moor Mother e Bartira ao funk do DJ Ramemes, passando pelo produtor recifense de bregafunk Marley no Beat, a produtora de hard dance White Prata e o DJ congolês Chrisman. A seu modo, cada um nos leva a direções inesperadas. Uma das faixas mais impressionantes neste sentido é a versão de Mbé para “Sem Cais”, que transforma a voz de Juçara em névoa e a desconstrói em uma batida de funk carioca que depois se transforma numa espécie de distopia drill robótica. A energia telúrica de “Criei um Pé de Ipê”, por sua vez, foi transformada em um avassalador terremoto pós-industrial nas mãos de Podeserdesligado e Nãovenhasemrosto. Enquanto a original transmite uma conexão íntima com a natureza, ao ponto de o pé de ipê ser quem faz o ser (e não o contrário), na versão da dupla de produtoras é sublinhado um estado de tecnoviolência que ataca esta conexão — como se o ipê estivesse afundando junto com o solo de Maceió deteriorado pelos químicos multinacionais da Monsanto.

Conhecido pela abordagem noise de uma fusão entre drum ‘n’ bass e funk de corredor do Rio de Janeiro, Wallace Função é o autor de uma das faixas mais brilhantes do álbum. Os versos guerrilheiros de “Crash” embaralham-se em uma teia desnorteante de poliritmos eletrônicos e percussões afrobrasileiras, que entrelaça o médio-grave da caixa cachorro típica dos paredões do forró e piseiro aos breakbeats de jungle e ataques de bacurinha oriundos do pagodão baiano – um design de som futurista ainda sem muitos paralelos na música brasileira atual.

Com DEBRMX, Delta Estácio Blues efetiva-se enquanto um álbum-procedimento ou álbum-experiência que não se limita ao seu produto único. No derradeiro espraiamento dos remixes, DEB torna-se um contínuo, como uma obra aberta às possibilidades de uma constante remontagem e reconfiguração.

(DEB RMX em uma faixa: “Crash – Wallace Função RMX”)

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