Resenhas

Kate Bush – The Kick Inside

Atmosfera cênica, tino pop, flertes com rock Progressivo – a estreia de uma jovem de 19 anos, sedenta por colocar sua voz no mundo

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Ano: 1978
Selo: EMI/Harvest
# Faixas: 13
Estilos: Art Rock, Baroque Pop, Art Pop
Duração: 43'
Produção: Andrew Powell

Qualquer um que já tenha ido a uma apresentação de teatro certamente se lembra do ritual que antecede a peça de fato. A acomodação nos lugares, os três sinais de aviso, o apagar das luzes e os anúncios gerais. Contudo, há um momento específico dentro desta dinâmica que une uma sensação misteriosa e mágica. São os poucos segundos de silêncio antes do palco se iluminar para que o espetáculo comece. Uma atmosfera ansiosa, uma sensação de completa imprevisibilidade, em que estamos no escuro diante do nada e a poucos instantes de embarcar no desconhecido. É sobre esta sensação, este súbito “lançar-se ao nada”, que a obra de Kate Bush foi construída. Um pressentimento de que, a todo instante, não temos ideia do que pode nos acontecer ou por quais caminhos a artista pode nos levar.

Sistematizar ou mapear sua discografia é uma tarefa audaciosa e, muitas vezes, parece até sem sentido. Afinal, como mapear uma explosão que nos retalha em migalhas? Como reunir todos estes pedaços? Para começar a responder estas perguntas é preciso encontrar aquela faísca primária, que dá origem a todas as arrebentações subsequentes. Em The Kick Inside encontramos um ponto de partida que, ao mesmo tempo, facilita a compreensão desta complexa discografia e também evidencia que a chama em questão já havia começado muito tempo antes da estreia oficial da artista.

O silêncio imprevisível é rompido aos primeiros segundos do disco pelo som de baleias ecoantes. Logo fica claro que os mundos criados por Kate Bush são autônomos. Estes mundos têm sido criados e recriados pela artista desde seus 13 anos, idade em que começou a compor suas primeiras canções, com a ajuda de seus irmãos. A arte sempre esteve presente em seu âmbito familiar, seja pelos pais que se aventuravam pela música e dança, ou pelos irmãos fotógrafos, poetas e até mesmo construtores de instrumentos musicais. Mas, dentro de Kate Bush, havia uma urgência em expressar e compartilhar suas construções e, nesta época, ela começa a produzir algumas demos caseiras que chegavam a quase 50 músicas. Havia muito a ser dito, mas as gravadoras da época não pareciam interessadas em desvendar a criatividade ambiciosa de Kate Bush.

Entretanto, é de se lembrar que, nos anos 1970, o Reino Unido era atravessado por uma onda de virtuosismo e experimentalismo do rock progressivo, cujos maiores representantes eram Yes, Genesis e Pink Floyd. Esta última banda é especificamente importante para a carreira de Kate Bush, já que foi por conta de David Gilmour que suas demos puderam ser escutadas em escala maior. Um amigo de Kate apresentou suas canções para David que, por sua vez, ficou encantando não apenas com aquela voz camaleônica e expressiva, mas pela complexidade daquelas demos, a princípio, despretensiosas.

Assim, Gilmour topou produzir registros de Kate Bush de forma um pouco mais refinada e com qualidade profissional. O resultado disso foi o imediato interesse da gravadora EMI em assinar com a artista. É curioso perceber como este episódio inicia, de certa forma, uma relação de Kate Bush com o universo do rock progressivo – vínculo que se solidifica ao analisarmos as notas de produção de seu disco de estreia. Além de David Gilmour, membros de The Alan Parsons project são alguns dos nomes que ajudaram Kate nesse pontapé inicial. Algumas destas canções demos – como “The Saxophone Song e “The Man With Child In His Arms” – entraram para o primeiro disco, tornando-se referência para o que seria construído adiante.

Sempre foi uma tarefa desafiadora definir a sonoridade de Kate Bush. Os termos que acabam sendo mais usados sempre são aqueles que têm alguma relação com a arte envolvida – art pop, art rock, baroque pop – e colocar este protagonismo no aspecto artístico é sem dúvida uma boa forma de começar a destrinchar uma sonoridade tão ampla. Isso está presente ao longo de The Kick Inside, pois não apenas da música este disco sobrevive. A dança certamente ocupa um papel central em sua construção e, talvez, este campo fique ainda mais evidente nas produções audiovisuais – como nos clipes do clássico “Wuthering Heights” e de “The Man With Child In His Eyes”. Outra arte que se acomoda entre as referências de Kate Bush é a própria dramaturgia – seja no aspecto da interpretação de suas letras, ou na forma como ela prioriza a narrativa, conferindo ritmo, clímax e desfechos próprios.

A história da capa também nos conta muito sobre pluralidade de Kate Bush. A arte mais conhecida é a que está à mostra no topo desta resenha – versão lançada oficialmente no Reino Unido. Porém, há uma série de capas alternativas deste registro – seis, para ser mais exato. A impressão que fica é que o universo de The Kick Inside é tão rico que uma expressão gráfica mal daria conta de descrever as histórias contidas no disco. Entretanto, a capa da edição inglesa ainda parece a mais pontual para compreender o universo surreal de Kate Bush, envolto de cores e formas e colocando a artista como ponto central. Ela sempre foi, em um sentido profundo e amplo, a dona de sua obra e sempre esteve à frente do controle criativo. Houve uma tentativa da EMI de colocar outra música como single principal, porém Kate foi categórica em afirmar que a única opção possível seria “Wuthering Heights”. O resultado foi que a faixa atingiu o primeiro lugar das paradas inglesas. Quem melhor que Kate Bush para tomar decisões acerca do próprio universo?

42 anos depois de seu lançamento, The Kick Inside ainda surpreende a cada audição. São elementos do rock Progressivo se unindo ao pop comercial, com personalidade, e rejeitando as caixinhas delimitadas de ambos. É como um instrumento que serve para dar conta de todo o rebuliço interno de Kate. Sua inspiração e seu universo são tão vivos que acabam por esclarecer o título do registro. É como se houvesse algo dentro de Kate Bush, sedento para sair, mesmo que, para isso, tenha que apelar à agressividade de um chute. O disco narra Kate cedendo aos impulsos de sua emoção criativa.

(The Kick Inside em uma faixa: “Wuthering  Heights”)

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ARTISTA: Kate Bush

Autor:

Produtor, pesquisador musical e entusiasta de um bom lounge chique